sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Demais...

"Quando há dias, no terraço de Savran, ao anoitecer, te queixavas que eu contemplasse as estrelas estando tão perto dos teus olhos, e espreitasse o adormecer das colinas junto ao calor dos teus ombros – não sabias, nem eu te soube então explicar, que essa contemplação era ainda um modo novo de te adorar, porque realmente estava admirando, nas coisas, a beleza inesperada que tu sobre elas derramas."

Eça de Queiroz, Cartas d'Amor.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Ho-ménage-m

Em 2005, recebi, por e-mail, uma crônica que teria sido publicada no Jornal do Brasil, de autoria da Danuza Leão, intitulado “Se eu pudesse”. Na época achei (como acho até hoje!) um acinte que as pessoas usassem o espaço que lhes é dado nos meios de comunicação para falar com seus pares, e só com eles.

Hoje, tentando localizar exatamente a data da publicação da matéria, vi que ela foi publicada no mês de setembro de 2008, na Folha de S. Paulo. Claro que fiquei com todas as pulgas atrás de todas as minhas orelhas! Continuo sem entender...

Deixo claro que sempre fui fã da Danuza; nada contra ela. Idiossincrasias, por que não tê-las?

Mas, a partir daquele original, fiz uma, digamos, infelicidade adaptada. Na época me pareceu cabível; hoje, muito mais. Se pudéssemos – principalmente depois de entrados em anos – mudaríamos muitas coisas, como já dizia Borges.

O original, que recebi da minha amiga Bia Kushner, está em <http://www.udemo.org.br/Leituras_258.htm>. Aqui, o meu próprio, o do B.


Se eu pudesse (o outro)

Seu eu pudesse, mudava minha vida toda; ela é muito ruim e queria ver se ela podia ser diferente.

Se eu pudesse, me desfaria de muitas coisas: da mãe doente, dos filhos marginais, do marido bêbado e... compraria roupas. Afinal, eu só preciso de um par de sandálias, um jeans, duas blusas, sobretudo agora que ando pensando em mudar de vida...

Queria ir à praia num primeiro de janeiro, enfiar a mão na areia e ter a felicidade de encontrar um colar de brilhantes. Quem perdeu pode viver sem, não pode?

Das garrafas de cachaça, escondidas tão cuidadosamente do meu marido, no fundo do quintal, daria para abrir mão, mesmo sentindo remorso; sidra, além de engordar, nem barato dá, de tão artificial que é. Aquele vinho de 5 reais é mais fácil ainda. Eu vou abrir e descobrir que virou vinagre mesmo e vou chegar à conclusão de que nada melhor que o velho e bom conhaque, com o qual sempre se pode contar.

E as amizades? Amizades mesmo, porque nunca tive relações. Ah, se eu tivesse telefone, nem precisava comprar caderninho, dá para guardar todos os nomes de cor. Eu nunca me esqueço deles mesmo.

Se tivesse emprego em outra cidade, nem precisa ser em outro país, eu ia começar do zero. Ia sofrer mais um pouco, pensando que se eu tivesse tido alguma ajuda teria errado menos e ninguém iria sofrer por isso, porque eu não tenho a capacidade de fazer alguém sofrer. Se eu fizesse alguém sofrer, seria um acontecimento a ser festejado.

Se pudesse – e não tivesse que levantar às 4 horas da manhã pra pegar o trem pra ir pro trabalho – comeria mais, iria dormir mais cedo, junto com meus queridos animais. Eu adoro bichos e crianças, mesmo os que não são meus. Tem certas coisas que não se pode não gostar, mas mesmo que não se goste, temos que agüentar. Que vida!

Se eu pudesse iria para deus-me-livre, onde ninguém me conhece, onde eu não tivesse passado nem futuro; lá em um lugar esquisito onde ninguém se entende, são todos estranhos, como quando encontro com o meus patrões no corredor e eles nem me cumprimentam.

Se eu pudesse, quando acordo de madrugada pra ir trabalhar, em vez disso ia olhar a lua, enrolada na coberta, com os pés descalços na terra fria do chão do meu barraco. Depois ia requentar o café passado ontem à noite, como sempre fiz.

Ficaria sonhando como é ter talão de cheques, cartões de crédito, casacos de pele e saber como se sentem as pessoas que têm tudo isto. No cinema as pessoas cortam os fios do telefone, jogam o celular na tela da TV e o computador pela janela, sem se importar se vai cair na cabeça de alguém; elas não têm idéia o quanto custa ganhar dinheiro para comprar essas coisas. Afinal, dinheiro não voa...

Se eu pudesse, faria mega-hair e reflexo nos meus cabelos, pararia de fumar e tomava minha cachaça no mesmo copo de geléia, como sempre fiz. Tentaria faltar ao trabalho para tirar minha carteira de identidade, o CPF e meu título de eleitor, pensando nas conseqüências de não ser uma cidadã com muito medo do futuro. Passaria devagar pelas latas de lixo na esperança de encontrar lençóis, travesseiros de pluma, cobertor e me espantaria ao encontrar pestanas postiças, afinal o que pensa da vida quem usa isto?

Seu eu pudesse, queria que todos soubessem o meu nome, o meu passado e a minha história e ia ser alguém. Alguém.

Se eu pudesse, mas nem que eu quisesse.

Pois é, quem dera eu pudesse ter dias assim; e isto não passa.

(A minha parte foi escrita em 16/10/2005.)

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Sou TRI!!!

Oba! No meu primeiro dia de blogueira já ganhei 3 (trê-iisszz) comentários! Obrigada, Carla e Fábio.

Só pra esclarecer: Coronel Camisão (este era o sobrenome dele) participou da Guerra do Paraguai. Ele comandou um ataque que foi repelido e ficou conhecido como a Retirada da Laguna. Ele se retirou, a Laguna ficou lá... (Mas, corre boato que ganhamos (um)a Guerra!)

domingo, 12 de outubro de 2008

Quem são nossos heróis

Olha, nos tempos que a gente tinha medo de militar, nem pensaria em fazer isto. Mas, estava na hora do almoço, passeando pela pracinha da Praia Vermelha e resolvi olhar com detalhes aquele monumento lá no meio. Rodeei, muito com sono, preguiça, e de repente, deparo com o nosso querido Coronel aí em cima! Não sei se ele era tuberculoso (os tbs ficavam tortos quando se lhes extirpavam o pulmão infectado), ou se tinha levado um tiro de canhão, mas ele está numa pose, digamos, nada condizente com uma pessoa que se chama... Coronel Camisão! Anyway, ele virou meu herói. De agora em diante, CC é tudo!

Vi vendo e desaprendendo

Saí à tarde pra tomar um expresso na Kopenhagen e passei numa sapataria para ver se tinha um tênis razoável. Quando vi estes aí, de longe, pensei que os tinha achado. Quando eu cheguei perto, não conseguia parar de rir, sozinha, feito uma louca. Aí não resisti e... click! O chato de a gente ser solteira é que não tem ninguém pra compartilhar o riso na hora certa. Compartilho (espartilho) esta "coisinha" com vocês. E gostaria de ver alguém usando. Me parece suuuuper confortável.

Este Robert é muito legal...

Laura Schlessinger is a US radio personality who dispenses advice to people who call in to her radio show. Recently, she stated that homosexuality is an abomination according to Leviticus 18:22, and cannot be condoned in any circumstance.

The following is an Open Letter to Dr. Laura penned by a US resident:

Dear Dr. Laura:

Thank you for doing so much to educate people regarding God's Law. I have learned a great deal from your radio show, and I try to share that knowledge with as many people as I can. When someone tries to defend the homosexual lifestyle, for example, I simply remind them that Lev. 18:22 clearly states it to be an abomination. End of debate. I do need some advice, however, regarding some of the specific Bible laws and how to best follow them.

a) When I burn a bull on the altar as a sacrifice, I know it creates a pleasing odor for the Lord (Lev. 1:9). The problem is my neighbors. They claim the odor is not pleasing to them. Should I smite them?

b) I would like to sell my daughter into slavery, as sanctioned in Exod. 21:7. In this day and age, what do you think would be a fair price for her? She's 18 and starting University. Will the slave buyer continue to pay for her education by law?

c) I know that I am allowed no contact with a woman while she is in her period of menstrual uncleanliness (Lev. 15:19-24). The problem is, how do you tell? I have tried asking, but most women take offense.

d) Lev. 25:44 states that I may possess slaves, both male and female, provided they are purchased from neighboring nations. A friend of mine claims that this applies to Mexicans, but not to Canadians. Can you clarify? Why can't I own Canadians?

e) I have a neighbor who insists on working on the Sabbath. Exod. 35:2 clearly states he should be put to death. Am I morally obligated to kill him myself, or should this be a neighborhood improvement project?

f) A friend of mine feels that even though eating shellfish is an abomination (Lev. 11:10), it is a lesser abomination than homosexuality. I don't agree. Can you settle this?

g) Lev. 21:20 states that I may not approach the altar of God if I have a defect in my sight. I have to admit that I wear reading glasses. Does my vision have to be 20/20, or is there some wiggle room here? May I approach the altar wearing contact lenses?

h) Most of my male friends get their hair trimmed, including the hair around their temples, even though this is expressly forbidden by Lev.19:27. How should they die?

i) I know from Lev. 11:6-8 that touching the skin of a dead pig makes me unclean, but may I still play football if I wear gloves?

j) My uncle has a farm. He violates Lev. 19:19 by planting two different crops in the same field, as does his wife by wearing garments made of two different kinds of thread (cotton/polyester blend). He also tends to curse and blaspheme a lot. Is it really necessary that we go to all the trouble of getting the whole town together to stone them?(Lev. 24:10-16). Couldn't we just burn them to death at a private family affair like we do with people who sleep with their in-laws? (Lev. 20:14).

I know you have studied these things extensively, so I am confident you can help. Thank you again for reminding us that God's word is eternal and unchanging.

Your devoted follower and adoring fan.

Robert

O Encontro

Quando virei a esquina estava muito escuro, não dava para saber se era uma rua ou um beco. Pensei e pensei, tirei o papel do bolso, conferi, era ali mesmo. Dei uma de filme americano "tem alguém aí?". O eco foi alto, eu me assustei e ouvi uns barulhos de pequenos corre-corre. Seriam ratos. Ratos? Não, eles não iriam combinar comigo num beco escuro, sem saída, cheio de ratos. Pensando bem, iriam sim. Dei uns quatro passos à frente, minha vista foi escurecendo rapidamente, e minhas mãos começaram a suar. Mau sinal. Eu queria encostar na parede e ir me esgueirando, mas não tinha parede. Eu teria de ir em frente, mas não enxergava onde estava pisando, fiquei com medo de cair num buraco ou coisa pior. Parei. Fiquei ouvindo. Dei mais uns passos. "Tem alguém aí?", repeti. Algo passou atrás de mim, muito rápido, muito grande. Quando me virei para voltar para a rua, a escuridão tinha tomado aquele lado de onde eu viera e não sabia mais onde estava. Meus pés começaram a suar também e uma pressão me subiu à cabeça. Eu reconhecia aqueles sintomas. Era puro e simples pavor. Silêncio. Eu queria voltar, mas não sabia mais para que lado. Estiquei o braço direito procurando por alguma coisa que tinha medo de encontrar. Andei mais um pouco, bem devagar, não sabia se estava indo ou vindo, muito menos para que lado. Olhei para cima, não tinha céu. Senti que o pior estava por vir, que era o choro. Eu iria chorar por medo de algo que não sabia o que era. Estava paralisada. Juntei os braços no peito, apertei as mãos junto ao queixo, fechei os olhos. A escuridão de olhos fechados é mais reconfortante que de olhos abertos. Senti que algo se aproximava, lentamente, silenciosamente. "Por favor, tem alguém aí?". Estava com medo de abrir os olhos e "ver". Parou. Estava gelada, dos pés à cabeça. Suava frio. As lágrimas vieram, finalmente, inexplicavelmente, silenciosamente. Se eu voltasse de costas. Claro, tinha vindo reto, voltaria reto. Ou não? Não conseguia me lembrar de que lado tinha vindo. Não precisava abrir os olhos, era só andar. Dei um passo, dois, três... Parei. Tinha ouvido algo atrás de mim. "Pelo amor de Deus, tem alguém aqui?". Silêncio. "Por favor!", chorava. Ajoelhei e chorava; deitei no chão, os ratos, os bichos. Cobri o rosto. "Por favor...". Foi quando ouvi a risada, cínica e silenciosa. E nunca mais abri os olhos.

Serviço de Utilidade

Era seu melhor amigo e estava ali, deitado, morto. Tentara fechar seus olhos, mas achou melhor que ficassem abertos, pois pareceria que ele estava vivo. Tentou chorar, mas faltavam-lhe sentimentos e suas lágrimas haviam secado havia muito tempo. Era quase de manhã, naquela hora que o sol começa a nascer e o corre-corre da cidade fica intenso. Não podia sair dali, o amigo tinha sido atropelado, não por culpa do motorista, coitado, foi pura imprudência. Ele bem que gritou, mas o amigo parecia meio bêbado, ou faminto, fraco, sabe-se lá por que não atendeu. Foi uma pancada só, seca. O rapaz saiu do carro apavorado, “não deu tempo, a culpa não foi minha, o senhor viu que ele atravessou correndo!”. Ele havia visto sim e desculpou o homem, que foi embora. Ficaria elas por elas: ele não daria queixa, nem o homem cobraria pelos amassados na lataria. Era justo, pensou. Arrumou o corpo, ficou em dúvida sobre o que fazer, afinal os dois andavam pelas ruas há tanto tempo, ninguém se interessava por eles. Deixa ficar, depois ele achava uma solução. Deitou-se ao lado do corpo, não muito perto porque ele ia começar a ficar gelado e aquele frio passa pelo chão e chega em tudo que estiver perto; também preferia não olhar pra ele, pois as lágrimas que já não tinha ficavam ardendo nos olhos. Lembrou-se de como o conheceu, zanzando ali pela orla da Lagoa, e de como se davam bem. Nunca brigaram! Eram como a mão direita e a esquerda; suas trocas de olhares valiam mais que mil palavras que, aliás, nem diziam. Todos achavam estranha aquela dupla, mas também não se negavam a ajudá-los. Não passavam fome nem frio. Andavam para lá e para cá, dia e noite, às vezes tomavam banho, às vezes, de madrugada, iam à praia, entravam no mar, felizes da vida. Quando ganhava um dinheiro, ficava logo bêbado e desandava a falar feito doido, o amigo com aquele olhar atento (ele aposta que nunca escutou) e era bom, porque como ele não se metia na sua vida, ele acabava desabafando sem ter que ouvir opiniões que não gostaria sobre como ele abandonou tudo e foi morar na rua, de como todos os amigos se afastaram quando ele perdeu tudo, de como a família nunca mais quis saber dele (às vezes via sua filha ou sua ex-mulher passando de carro, mas se escondia atrás dos arbustos para que elas não o vissem assim, acabado). Fora tão rico que nem podia contar o dinheiro; nunca havia se preocupado com nada, todos faziam tudo para ele – desde a mãe até a secretária, passando pela mulher e filha e alguns amigos. Amigos... Nunca comprou uma peça de roupa, um par de sapatos, presentes para os aniversariantes e para os que tinha que paparicar. Era só estalar os dedos que todos se agitavam “pois não, doutor!”, “o que foi, amor?”, “diga lá, papai!”, “fala aí, meu irmão!”, “diz, que mamãe faz...”. Hipócritas! Levantou-se e começou a gritar uma espécie de uivo, mas logo se deu conta de que poderia chamar a atenção e sentou-se novamente. Nojentos! Ele devia saber, mas estava cego pelo poder de sedução que tinha e conseguia convencer até o papa, se ele tivesse que ser convencido. Aumentou seu capital cem, mil vezes, nem se lembrava! Sua secretária era apaixonada por ele, desde sempre, e foi a única que foi visitá-lo na prisão. Ela sempre dizia que se ele quisesse, quando saísse dali poderia morar com ela. E ele não quis, ficou com vergonha até da secretária, quem diria. Aliás, nunca mais a viu, apesar de às vezes pegar umas caronas até perto de onde ela morava, mas não a encontrou. Não lhe sobrara um tostão, um bem que fosse; levaram tudo, todos levaram tudo, a mulher ameaçou chamar a polícia quando ele tentou entrar na sua casa para pegar umas roupas. A filha olhou para ele com cara de nojo, a mãe não queria vê-lo em hipótese alguma. Os amigos... A causa de tudo foi justamente aqueles amigos: “Alfredo, vamos entrar nessa, é a bola da vez, vamos ganhar dinheiro como nem você nunca viu!” Idiota! Como ele foi idiota, ele que era um executivo respeitado pela sua capacidade de farejar dinheiro onde ninguém sequer imaginava. Levantou-se de novo e começou a chutar o chão, suas latas, quase chuta o corpo do amigo. Sentou-se de novo. Tomaria uma garrafa todinha de cana, mas não tinha uma. O dia estava claro agora, a cidade acordava, o barulho era insuportável ali na beira da rua. Chegaram os rapazes da limpeza urbana, varrendo as calçadas, ele foi até eles pedir um trago de cachaça, eles sempre têm. “Cadê Heitor?”, perguntou o gari. Morreu de madrugada, ele respondeu limpando a cachaça com as costas imundas da mão. “Morreu de que, rapaz?”. Atropelado, o corpo está ali no meio daquele canteiro. “E tu vai fazer o que, homem?”. Não sabia, nem chorar conseguia. “Se tu quiser, a gente enterra ele”. Estava bem, mas tinha que fechar os olhos dele primeiro e ele tinha que se despedir. “Vai lá então, enquanto eu pego um saco pra botar ele”. Quando olhou o companheiro, assim, à luz do dia, veio uma lágrima nos seus olhos e ele conseguiu dizer adeus, Heitor. Seus olhos não fechavam mais. Pegou-o no colo, enfiou-o naquele saco preto e entregou ao gari, que comentou: “Êita, que isto aqui tá virando cemitério de cachorro! Já faz bem uns quatro que eu enterrei aqui”. Agradeceu ao gari e saiu em direção à Avenida, ia tentar pegar uma carona até Vila da Penha, para ver se encontrava a sua secretária...

Dona Elisa

Morava num conjugado, sozinha, e ali cabia tudo que lhe era caro nesta vida. Um gato, umas bugigangas de sua infância que milagrosamente haviam sobrevivido ao seu descaso, uma bombonière azul – imitando um murano cheio de bolinhas, que fora de sua mãe –, umas plantas. Morava ali há anos, na Rua da Glória, quase esquina com Candido Mendes, de frente para o Aterro do Flamengo. Xiquinha, a gata, era sua companheira há quase dez anos já.
Às vezes ficava, à noite, olhando pela janela, olhos fixos no horizonte, a mente em devaneios. As lembranças iam e vinham. O Rio, que já não reconhecia, havia proporcionado a ela momentos inusitados.
Nascera em Botafogo, numa casa de vila na Rua Assunção; era a caçula de quatro irmãos. O pai, dr. Augusto, advogado, um funcionário público federal, a mãe professora primária. Os irmãos Carlos e Eugênio – gêmeos – eram o terror da vizinhança, mas num bom sentido. Eram muito alegres, promoviam festas em quase todos os finais de semana no Sírio e Libanês. Ronaldo, o mais velho, bonito, era mais sério, tinha feições sisudas como o pai, com uma vasta cabeleira negra que mantinha habilmente no lugar a poder de brilhantina. Ela, Elisa, saiu meio tímida, com muito charme, como a mãe, Dona Dorothéa, que não saía de casa sem brincos e batom. As amigas, poucas, moravam na vila e arredores, todas – sem exceção – suspirando por Ronaldo, que as ignorava. Sua paixão era José, filho único de seu Diamantino, o português dono da padaria. José era amigo dos gêmeos e freqüentava sua casa diariamente, pois era membro do comitê organizador das festas que Carlos e Eugênio insistiam em promover. Depois soube que o intuito era manter um “excedente” de namoradas, o que a deixou muito magoada, pois tinha José em alta conta.
Aos 15 anos, na primavera de 1954, participou do baile de debutantes no Fluminense. Era presente de seu pai, por ser uma menina sossegada, afeta às tarefas domésticas, com excelentes notas no Colégio Imaculada Conceição, almejando ser professora, como a mãe.
Naquele sábado estava tão nervosa que decidiu não se aborrecer. Só ouvia Carlos e Eugênio reclamando que seus smokings não estavam bem passados, que não sabiam dar o laço na gravata, que os sapatos estavam apertados – Eugênio insistia que deveria usar ligas para que suas meias ficassem perfeitamente esticadas, o que provocou a ira de Carlos por achar que era coisa de “fresco”, o que, por sua vez, provocou a ira de seu pai por Carlos falar certas palavras em casa. Ronaldo não se abalava, era do tipo que deixava todas as peças do vestuário que iria usar cuidadosamente esticadas em cima da cama – da gravata às meias.
Ela permanecia em cima de um banquinho, as costureiras em volta, arrematando aqui e ali. Dona Dorothéa, nervosa, passava a fita de cetim que Elisa iria usar nos cabelos, que ainda não estavam penteados porque preferira deixar o cabeleireiro e a manicure por último. Ao fundo, o rádio ligado no Programa César de Alencar, que anunciava para dali a pouco a presença do “brotinho” Francisco Carlos, de quem era fã ardorosa.
Dr. Augusto insistia em assistir à TV, pela novidade da invenção, e se esquecera de fazer cabelos e barba. Foi às pressas para a barbearia do Cristóvão, com quem discutia política, ainda comentando, com pesar, o suicídio de Getulio Vargas, o que, nas suas opiniões, iria conduzir o país a uma inevitável derrocada.
Às 10 horas em ponto ela entrou no clube, já muito cheio. A orquestra de Severino Araújo tocava “In the Mood”, bem ao estilo Glenn Miller, que ela adorava. Não conseguia esconder a excitação que aquele evento provocava nela. O burburinho era muito grande, e pediu licença para ir retocar a maquiagem. No caminho deparou com um rapaz, totalmente desconhecido, que a olhava fixamente. Vasculhou sua memória, mas não conseguiu se lembrar de tê-lo visto antes, nem nas costumeiras festinhas de Carlos e Eugênio. E também não entendeu por que isto estava tomando seu tempo, já que o evento da noite era o que mais deveria estar lhe ocupando. Encontrou Anita, sua amiga da rua, e perguntou se ela tinha visto aquele moço. Anita espiou pela fresta da porta e negou que o conhecesse, mas ele era “um pedaço de homem”, disse, rindo.
Ao sair, o rapaz veio ao seu encontro, e convidou-a para dançar. Anita deu um gritinho histérico e saiu correndo para o salão. Ela ficou ali, não sabia o que dizer, surpresa. Seu nome era ­­­Celso, apresentou-se. Ele tinha cerca de 1,80m, o rosto muito branco e liso, os olhos de um azul incomum, a barba cerrada, cabelos louros, fartos, o smoking impecável. Cheirava a um perfume que não conhecia – apesar de Carlos e Eugênio terem uma coleção infindável deles –, mas que a embevecia a ponto de sentir-se tonta. Quando deu por si estava dançando ao som de “Because of You”, uma de suas preferidas. Pensou que era a música ideal para aquele momento, embora não soubesse explicar por que. Celso não dizia palavra. Trazia-a bem rente ao peito, o braço justo em sua cintura, a mão sustentando a sua com delicadeza. Não colaram os rostos, aquilo não seria direito, mas às vezes sentia no seu um roçar do dele, de leve, que a fazia estremecer e ficou com medo que ele percebesse seu destempero. Não trocaram uma palavra. Ao final, Celso agradeceu a dança, beijou-lhe a mão e desapareceu no meio dos convidados. Ela ficou atônita, demorou alguns segundos para se situar e voltar à mesa de seus pais.
Seu pai tirou-a para dançar e ela não pôde deixar de comparar o desconforto que o rosto colado dele provocava nela. Depois foi Ronaldo, Carlos, e Eugênio, e José. Sua mãe estava exultante. E ela se flagrava procurando por Celso. Meia-noite chegou, a cerimônia das debutantes foi um sucesso. Com a desculpa de ir ao toalete, ela saíra, por três vezes, à procura de Celso, em vão. Chegou a pensar que tinha sonhado. Tampouco Anita o tinha visto novamente. Nunca mais o viu.
Sua vida, dali para frente foi uma eterna saudade. Formou-se professora no Instituto de Educação, lecionava no próprio Imaculada Conceição e acabou se casando com José. Não tiveram filhos, ele trabalhava muito na padaria que herdara do pai e não gostava mais de sair. Ela se contentava em assistir à TV e visitar os pais. Ronaldo e Carlos se casaram, Eugênio entrou para a Marinha Mercante. Às vezes ia sozinha ao Cine Ópera, na Praia de Botafogo, na esperança de encontrar Celso. Inventava compras em Copacabana, na Cidade – ficava horas sentada na Confeitaria Colombo – e mesmo idas ao Sírio e Libanês e ao Fluminense, tudo em vão. Suas amigas também haviam se casado, tinham filhos e ela preferia não tocar neste assunto com elas. Uma vez tentou, com Anita – que, afinal, era a única que tinha visto Celso –, mas ela lhe pediu que tirasse isto da cabeça. E ele ficou só na sua lembrança.
José morreu de infarto, deixando-lhe o conjugado na Glória, e a padaria cheia de dívidas, tantas que teve que vendê-la. Seus pais faleceram, seus irmãos se aposentaram, Carlos morava na Tijuca e Ronaldo no Grajaú. Eugênio foi para Roraima e nunca mais se ouviu falar dele. Suas amigas vivem para os filhos e maridos. Ela, aposentada, foi morar no conjugado, com Xiquinha, e suas poucas lembranças.
Naquela noite foi até à padaria da Rua Santo Amaro, assim faria um pouco de exercício. Encontrou uns conhecidos que teimavam em ficar por ali naquela feira de miseráveis em frente ao Palácio São Joaquim. Entrou na padaria, cumprimentou o José (será que todos são josés?). Enquanto esperava, teve a impressão de que no rádio estava tocando “Because of You”, mas percebeu que era só na sua cabeça; olhou pelo espelho e viu um homem parado na porta, olhando fixamente para ela. Aqueles olhos... Celso! Voltou-se rapidamente, sua cabeça girando – “because of you there’s a song in my heart”-, um sorriso largo nos lábios – “it’s paradise to be near you like this” –, o coração a sair pela boca. Caiu. José correu, mas já era tarde. Quando a ambulância chegou perguntaram o que havia acontecido, ele disse que quando ia entregar o pão a ela, Dona Elisa se virou bruscamente, com um sorriso nos lábios, como se tivesse visto alguém conhecido, mas não tinha ninguém atrás dela, coitada.

Dia após dia


Sabe quando você começa a chorar assim, do nada? Convulsivamente? Vem alguém e diz pra você ir ao centro espírita, porque só pode ser encosto? “Conheço um caboclo que é tiro e queda!”. Esta expressão, nos dias de hoje, pode aumentar ainda mais a intensidade do choro, mas, no fundo, no fundo, você sabe que não é encosto. No fundo você sabe que aquilo é porque o seu pote está “até aqui de mágoa”. E a gota d’água chegou como uma enchente.
E você vai pra casa, que embora aconchegante, está vazia; e você se senta numa poltrona, a mais confortável, e chora e chora. Quando seus olhos estão como que atingidos por um enxame de marimbondos, você “liga” o videotape da sua vida e então começa a esquadrinhar para entender o por que daquela desgraça.
E como tem coisa! Aquele dia em que sua prima te expulsou da casa dela porque achou que você tivesse pisado no dedinho do seu priminho (e não tinha); quando sua tia te expulsou da casa dela porque você não atendeu ao primeiro chamado (porque você não ouviu); aquele dia que você chegou no colégio com os olhos inchados e com os braços machucados, morrendo de vergonha por ter levado uma surra que até hoje você não sabe por que foi; quando seus “amigos” debochavam de você porque você não era do mesmo nível social que eles e você nem desconfiava; e outros debochavam porque você usava roupas e sapatos de doação; quando a mãe da sua “amiga” te expulsou da casa dela porque a mãe dela havia dito que você estava “pegando” homem durante a festa da noite anterior (e não estava); quando a mãe de um pobre coitado, drogado, te expulsou da casa deles porque ela achou que você era mais drogada que ele (e não era); quando a mãe de uma outra “amiga” te expulsou porque você falava muito palavrão (falava mesmo); quando o pai do seu amigo te expulsou, dizendo que você era prostituta (e não era); quando suas “amigas” te expulsaram da casa delas, dizendo que não queriam mais você por ali; quando você percebeu que nunca teve uma família porque você não era para ter nascido; quando todos os seus “amigos” se casaram e nenhum te convidou; quando você monta seu primeiro apartamento sozinha e um “amigo” lhe dá panelas furadas e amassadas de presente “porque ia jogar fora mesmo”; quando o mesmo “amigo” joga fora uma litogravura sua, valiosa, achando que “fosse lixo”; quando sua chefe disse que você “não é das mais burras”; quando o seu outro chefe não confia no trabalho que você faz há trinta anos e pede pra chamar alguém “mais qualificado”; quando você gostaria de estar no Paraíso, mas está na Avenida Rio Branco, esquina com Ouvidor, com um calor de 43ºC à sombra, conseguindo desviar do escarro, do mendigo, do camelô, do buraco, do cocô, da polícia, do trânsito, da gritaria, do assalto, do tiro; quando você se desespera porque o salário não vai ser pago em dia; quando você tem que pedir para os credores esperarem e vê na cara deles que não estão acreditando em você; quando você é honesta e é considerada “uma otária”; quando você trata bem as pessoas e, de novo, é chamada de “otária”; quando você vai consultar seu saldo e não tem mais um tostão...
.........

Sabe quando você começa a chorar convulsivamente, porque as coisas vêm acontecendo há anos e até hoje você não conseguiu mudar?
Então você sai para a rua cheia de escarros, de mendigos, de buracos, de cocôs, de assaltos, de polícia, de tiros, sem saldo, os olhos inchados, com cara de otária...

Vices

Todo ano era a mesma coisa. Seu time, já havia uns quatro anos, não conseguia ganhar o título. A gozação dos amigos era constante e aumentava à medida que o final do campeonato chegava. O time sempre ia, ia, mas não chegava. Este ano teria que ser diferente. Tinha que ser diferente.
Seu trabalho não era lá essas coisas. Ósto (que mais tarde soube ser o que seus pais entendiam por Washington) conseguiu montar uma barraca de churrasquinho, começou a vender cerveja, uma cachacinha e agora tinha como que uma birosca, perto da Central do Brasil. Conhecia todo mundo por ali, já que dois terminais rodoviários, um ferroviário e mais uma estação do metrô despejavam gente que não acabava mais. Cobradores, motoristas, policiais, guardas, seguranças, prostitutas, pequenos ladrões, grandes ladrões, mequetrefes de todos os calibres, um frege só. Mas ele não se queixava, podia ser pior.
Em casa, a mulher e dois filhos pequenos em idade escolar esperavam por ele à noite, quando chegava, lá pelas 10 horas. Cansado, tinha tempo apenas para um banho frio; eles moravam num barraco no Morro da Providência, que ele conseguira comprar a duras penas, só para ficar mais perto do local de trabalho. Antigamente morava em Belford Roxo, tinha que sair muito cedo para providenciar as carnes, os molhos e repor o estoque de cervejas no isopor com muito gelo. Sua cerveja era a melhor da Central, diziam, e não podia deixar a qualidade cair, tinha muita concorrência.
Seu vizinho, o Paulo, era flamenguista roxo, mas não “zoava” ele por causa dos vice-campeonatos. Iam ao Maracanã juntos, não vestiam as camisas dos seus times porque não queriam confusão. As duas famílias se davam muito bem, às vezes faziam uma feijoada – ele não agüentava mais churrasco – e o pagode comia solto até altas horas. Paulo também era “autônomo”, só que lá pras bandas da Lapa, embaixo dos Arcos. Com a revitalização daquela área ele estava fazendo um bom dinheiro.
As mulheres não trabalhavam fora, mas faziam sempre uma coisa ou outra para ajudar no orçamento: um bolo, uma rifa, umas costuras. Paulo tinha três filhas, ele um casal. Tinha dia que eles se encontravam no pé do Morro e ficavam ali, horas a fio, botando a conversa em dia, tomando umazinha bem gelada. Quando iam chegando em casa, uma pequena bifurcação os separava, cada um para o seu lado.
Ósto pensava que sua vida não era de todo ruim: apesar da violência, do desemprego, das desigualdades, da pobreza, do calor, do desconforto, podia até dizer que era feliz, pois não tinha problemas em casa, na rua respeitava e era respeitado, cada um sabia seu lugar. Marilene, sua mulher, nunca foi preguiçosa, cuidava bem de Ostinho e Aurinéia, cuidava da casa, aquelas coisas que quando se chega cansado em casa se dá valor.
A família de Marilene morava em Japeri, longe demais, mas às vezes eles iam passar um feriadão por lá, quando o movimento na Central ficava muito baixo. Tinha vez até que o Paulo e a Ediléia iam com as crianças também. Seus sogros eram crentes, mas eram pessoas alegres, achavam que cada um tem sua crença e não perturbavam para tentar converter as pessoas. Melhor assim, pois ele era agarrado com Santo Expedito e Nossa Senhora Aparecida, andava com eles na carteira.
Tinha noite que quando estava muito quente, ele se sentava na beira da porta do barraco e ficava olhando a cidade lá do alto. Tem o Morro do Estácio, da Mineira, bem em frente, atrás do Sambódromo; tem o Cristo, aqueles prédios grandes do centro, o relógio da Central – que ele achava uma beleza, aqueles ponteiros marcando a hora certinho, minuto a minuto, sem cair... Às vezes saía tiroteio, tinha umas brigas, mas era só não se meter que nada acontecia com eles. Ele já vira uns rapazes fazendo mira no prédio da Prefeitura, no Morro de São Carlos, doidões, alguns ainda crianças, mas sentia que não podia fazer nada. A vida leva cada um para o seu lado, ele mesmo tentava levar a dele sossegado. É, não podia se queixar.
Um dia a Ediléia do Paulo veio perguntar à Marilene se ela podia ir com as crianças lá para Japeri; era um feriadão, ela ia ajudar nas despesas, não ia dar trabalho. Marilene achou ótimo e aproveitou para mandar os seus dois também, seria uma folga. Ligou para a mãe e ficou acertado que eles iriam, menos o Paulo, que iria aproveitar um monte de shows que ia ter na Lapa para ganhar um extra.
Com outra final de campeonato chegando, e levando fé que seu time não iria ser o vice desta vez, Ósto convidou Paulo para irem ao Maracanã. Ele relutou, disse que seu time tinha sido eliminado e ele não iria lá pra ver o time dos outros, mas acabou concordando. No domingo pela manhã Ósto levantou tarde, com uma baita preguiça, Marilene estava fazendo o mocotó espertíssimo que ele adorava; ficou ouvindo o rádio, tomando uma cerveja para se animar. Lá pelas três e pouco começou a se arrumar – bermuda, camiseta e chinelo –, radinho em punho. Despediu-se de Marilene e desceu com o Paulo.
No estádio o jogo era eletrizante ali na geral. Ele estava até passando mal, porque seu time não abria o placar, apesar de poder até perder. Acabou o primeiro tempo, ele foi ao banheiro sempre imundo, xingou um torcedor do outro time que teimava, sem sucesso, em fazer xixi lá da porta mirando dentro do mictório, tomaram uma cerveja e voltaram. “Vamos ver se agora vai”, esfregou as mãos. “Sei não”, retrucou Paulo. Mas, o adversário veio com tudo, parecia outro time. Ele não acreditava no que estava vendo. Dois minutos, gol! Doze minutos, outro gol! Vinte minutos, mais um... Não! De novo, não! Paulo delirava, mas sem provocar o amigo. Ósto não queria ver aquilo. Resolveu voltar pra casa, pois ganhava mais vendo televisão no sofá.
Pegaram o ônibus até a Novo Rio e foram subindo a pé, ele pensando na gozação que teria que aturar no dia seguinte. Mas nada que um dia de trabalho não espantasse, depois eles se acostumam e param. O Paulo subia quieto, ele não costumava sacanear por causa de futebol, eram amigos. Foram subindo, as TVs ligadas no jogo, alguns já comemorando, os adversários soltavam fogos por ver o tradicional inimigo ficar em segundo de novo.
Quase chegando na bifurcação, Ósto olhou para seu barraco e viu um homem saindo de lá, sem camisa, descendo rapidamente pelo barranco em direção à viela de trás. Ficou gelado! A Marilene?! Será que o Paulo viu? Que filhos da...! Parou por um momento, passou a mão pela testa para secar o suor, desligou o radinho, pensando no que fazer. Será que o Paulo viu?... Foi andando devagar, derrotado; ele não podia acreditar naquilo, era demais. Na bifurcação, quando, sem graça, ia falando “té mais” pro Paulo, este se vira para ele e diz: “Aê, Ósto, na boa? Tem jeito não: tu nasceu pra ser vice mêrmo, mané!”.