domingo, 12 de outubro de 2008

Vices

Todo ano era a mesma coisa. Seu time, já havia uns quatro anos, não conseguia ganhar o título. A gozação dos amigos era constante e aumentava à medida que o final do campeonato chegava. O time sempre ia, ia, mas não chegava. Este ano teria que ser diferente. Tinha que ser diferente.
Seu trabalho não era lá essas coisas. Ósto (que mais tarde soube ser o que seus pais entendiam por Washington) conseguiu montar uma barraca de churrasquinho, começou a vender cerveja, uma cachacinha e agora tinha como que uma birosca, perto da Central do Brasil. Conhecia todo mundo por ali, já que dois terminais rodoviários, um ferroviário e mais uma estação do metrô despejavam gente que não acabava mais. Cobradores, motoristas, policiais, guardas, seguranças, prostitutas, pequenos ladrões, grandes ladrões, mequetrefes de todos os calibres, um frege só. Mas ele não se queixava, podia ser pior.
Em casa, a mulher e dois filhos pequenos em idade escolar esperavam por ele à noite, quando chegava, lá pelas 10 horas. Cansado, tinha tempo apenas para um banho frio; eles moravam num barraco no Morro da Providência, que ele conseguira comprar a duras penas, só para ficar mais perto do local de trabalho. Antigamente morava em Belford Roxo, tinha que sair muito cedo para providenciar as carnes, os molhos e repor o estoque de cervejas no isopor com muito gelo. Sua cerveja era a melhor da Central, diziam, e não podia deixar a qualidade cair, tinha muita concorrência.
Seu vizinho, o Paulo, era flamenguista roxo, mas não “zoava” ele por causa dos vice-campeonatos. Iam ao Maracanã juntos, não vestiam as camisas dos seus times porque não queriam confusão. As duas famílias se davam muito bem, às vezes faziam uma feijoada – ele não agüentava mais churrasco – e o pagode comia solto até altas horas. Paulo também era “autônomo”, só que lá pras bandas da Lapa, embaixo dos Arcos. Com a revitalização daquela área ele estava fazendo um bom dinheiro.
As mulheres não trabalhavam fora, mas faziam sempre uma coisa ou outra para ajudar no orçamento: um bolo, uma rifa, umas costuras. Paulo tinha três filhas, ele um casal. Tinha dia que eles se encontravam no pé do Morro e ficavam ali, horas a fio, botando a conversa em dia, tomando umazinha bem gelada. Quando iam chegando em casa, uma pequena bifurcação os separava, cada um para o seu lado.
Ósto pensava que sua vida não era de todo ruim: apesar da violência, do desemprego, das desigualdades, da pobreza, do calor, do desconforto, podia até dizer que era feliz, pois não tinha problemas em casa, na rua respeitava e era respeitado, cada um sabia seu lugar. Marilene, sua mulher, nunca foi preguiçosa, cuidava bem de Ostinho e Aurinéia, cuidava da casa, aquelas coisas que quando se chega cansado em casa se dá valor.
A família de Marilene morava em Japeri, longe demais, mas às vezes eles iam passar um feriadão por lá, quando o movimento na Central ficava muito baixo. Tinha vez até que o Paulo e a Ediléia iam com as crianças também. Seus sogros eram crentes, mas eram pessoas alegres, achavam que cada um tem sua crença e não perturbavam para tentar converter as pessoas. Melhor assim, pois ele era agarrado com Santo Expedito e Nossa Senhora Aparecida, andava com eles na carteira.
Tinha noite que quando estava muito quente, ele se sentava na beira da porta do barraco e ficava olhando a cidade lá do alto. Tem o Morro do Estácio, da Mineira, bem em frente, atrás do Sambódromo; tem o Cristo, aqueles prédios grandes do centro, o relógio da Central – que ele achava uma beleza, aqueles ponteiros marcando a hora certinho, minuto a minuto, sem cair... Às vezes saía tiroteio, tinha umas brigas, mas era só não se meter que nada acontecia com eles. Ele já vira uns rapazes fazendo mira no prédio da Prefeitura, no Morro de São Carlos, doidões, alguns ainda crianças, mas sentia que não podia fazer nada. A vida leva cada um para o seu lado, ele mesmo tentava levar a dele sossegado. É, não podia se queixar.
Um dia a Ediléia do Paulo veio perguntar à Marilene se ela podia ir com as crianças lá para Japeri; era um feriadão, ela ia ajudar nas despesas, não ia dar trabalho. Marilene achou ótimo e aproveitou para mandar os seus dois também, seria uma folga. Ligou para a mãe e ficou acertado que eles iriam, menos o Paulo, que iria aproveitar um monte de shows que ia ter na Lapa para ganhar um extra.
Com outra final de campeonato chegando, e levando fé que seu time não iria ser o vice desta vez, Ósto convidou Paulo para irem ao Maracanã. Ele relutou, disse que seu time tinha sido eliminado e ele não iria lá pra ver o time dos outros, mas acabou concordando. No domingo pela manhã Ósto levantou tarde, com uma baita preguiça, Marilene estava fazendo o mocotó espertíssimo que ele adorava; ficou ouvindo o rádio, tomando uma cerveja para se animar. Lá pelas três e pouco começou a se arrumar – bermuda, camiseta e chinelo –, radinho em punho. Despediu-se de Marilene e desceu com o Paulo.
No estádio o jogo era eletrizante ali na geral. Ele estava até passando mal, porque seu time não abria o placar, apesar de poder até perder. Acabou o primeiro tempo, ele foi ao banheiro sempre imundo, xingou um torcedor do outro time que teimava, sem sucesso, em fazer xixi lá da porta mirando dentro do mictório, tomaram uma cerveja e voltaram. “Vamos ver se agora vai”, esfregou as mãos. “Sei não”, retrucou Paulo. Mas, o adversário veio com tudo, parecia outro time. Ele não acreditava no que estava vendo. Dois minutos, gol! Doze minutos, outro gol! Vinte minutos, mais um... Não! De novo, não! Paulo delirava, mas sem provocar o amigo. Ósto não queria ver aquilo. Resolveu voltar pra casa, pois ganhava mais vendo televisão no sofá.
Pegaram o ônibus até a Novo Rio e foram subindo a pé, ele pensando na gozação que teria que aturar no dia seguinte. Mas nada que um dia de trabalho não espantasse, depois eles se acostumam e param. O Paulo subia quieto, ele não costumava sacanear por causa de futebol, eram amigos. Foram subindo, as TVs ligadas no jogo, alguns já comemorando, os adversários soltavam fogos por ver o tradicional inimigo ficar em segundo de novo.
Quase chegando na bifurcação, Ósto olhou para seu barraco e viu um homem saindo de lá, sem camisa, descendo rapidamente pelo barranco em direção à viela de trás. Ficou gelado! A Marilene?! Será que o Paulo viu? Que filhos da...! Parou por um momento, passou a mão pela testa para secar o suor, desligou o radinho, pensando no que fazer. Será que o Paulo viu?... Foi andando devagar, derrotado; ele não podia acreditar naquilo, era demais. Na bifurcação, quando, sem graça, ia falando “té mais” pro Paulo, este se vira para ele e diz: “Aê, Ósto, na boa? Tem jeito não: tu nasceu pra ser vice mêrmo, mané!”.

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