domingo, 12 de outubro de 2008

Dona Elisa

Morava num conjugado, sozinha, e ali cabia tudo que lhe era caro nesta vida. Um gato, umas bugigangas de sua infância que milagrosamente haviam sobrevivido ao seu descaso, uma bombonière azul – imitando um murano cheio de bolinhas, que fora de sua mãe –, umas plantas. Morava ali há anos, na Rua da Glória, quase esquina com Candido Mendes, de frente para o Aterro do Flamengo. Xiquinha, a gata, era sua companheira há quase dez anos já.
Às vezes ficava, à noite, olhando pela janela, olhos fixos no horizonte, a mente em devaneios. As lembranças iam e vinham. O Rio, que já não reconhecia, havia proporcionado a ela momentos inusitados.
Nascera em Botafogo, numa casa de vila na Rua Assunção; era a caçula de quatro irmãos. O pai, dr. Augusto, advogado, um funcionário público federal, a mãe professora primária. Os irmãos Carlos e Eugênio – gêmeos – eram o terror da vizinhança, mas num bom sentido. Eram muito alegres, promoviam festas em quase todos os finais de semana no Sírio e Libanês. Ronaldo, o mais velho, bonito, era mais sério, tinha feições sisudas como o pai, com uma vasta cabeleira negra que mantinha habilmente no lugar a poder de brilhantina. Ela, Elisa, saiu meio tímida, com muito charme, como a mãe, Dona Dorothéa, que não saía de casa sem brincos e batom. As amigas, poucas, moravam na vila e arredores, todas – sem exceção – suspirando por Ronaldo, que as ignorava. Sua paixão era José, filho único de seu Diamantino, o português dono da padaria. José era amigo dos gêmeos e freqüentava sua casa diariamente, pois era membro do comitê organizador das festas que Carlos e Eugênio insistiam em promover. Depois soube que o intuito era manter um “excedente” de namoradas, o que a deixou muito magoada, pois tinha José em alta conta.
Aos 15 anos, na primavera de 1954, participou do baile de debutantes no Fluminense. Era presente de seu pai, por ser uma menina sossegada, afeta às tarefas domésticas, com excelentes notas no Colégio Imaculada Conceição, almejando ser professora, como a mãe.
Naquele sábado estava tão nervosa que decidiu não se aborrecer. Só ouvia Carlos e Eugênio reclamando que seus smokings não estavam bem passados, que não sabiam dar o laço na gravata, que os sapatos estavam apertados – Eugênio insistia que deveria usar ligas para que suas meias ficassem perfeitamente esticadas, o que provocou a ira de Carlos por achar que era coisa de “fresco”, o que, por sua vez, provocou a ira de seu pai por Carlos falar certas palavras em casa. Ronaldo não se abalava, era do tipo que deixava todas as peças do vestuário que iria usar cuidadosamente esticadas em cima da cama – da gravata às meias.
Ela permanecia em cima de um banquinho, as costureiras em volta, arrematando aqui e ali. Dona Dorothéa, nervosa, passava a fita de cetim que Elisa iria usar nos cabelos, que ainda não estavam penteados porque preferira deixar o cabeleireiro e a manicure por último. Ao fundo, o rádio ligado no Programa César de Alencar, que anunciava para dali a pouco a presença do “brotinho” Francisco Carlos, de quem era fã ardorosa.
Dr. Augusto insistia em assistir à TV, pela novidade da invenção, e se esquecera de fazer cabelos e barba. Foi às pressas para a barbearia do Cristóvão, com quem discutia política, ainda comentando, com pesar, o suicídio de Getulio Vargas, o que, nas suas opiniões, iria conduzir o país a uma inevitável derrocada.
Às 10 horas em ponto ela entrou no clube, já muito cheio. A orquestra de Severino Araújo tocava “In the Mood”, bem ao estilo Glenn Miller, que ela adorava. Não conseguia esconder a excitação que aquele evento provocava nela. O burburinho era muito grande, e pediu licença para ir retocar a maquiagem. No caminho deparou com um rapaz, totalmente desconhecido, que a olhava fixamente. Vasculhou sua memória, mas não conseguiu se lembrar de tê-lo visto antes, nem nas costumeiras festinhas de Carlos e Eugênio. E também não entendeu por que isto estava tomando seu tempo, já que o evento da noite era o que mais deveria estar lhe ocupando. Encontrou Anita, sua amiga da rua, e perguntou se ela tinha visto aquele moço. Anita espiou pela fresta da porta e negou que o conhecesse, mas ele era “um pedaço de homem”, disse, rindo.
Ao sair, o rapaz veio ao seu encontro, e convidou-a para dançar. Anita deu um gritinho histérico e saiu correndo para o salão. Ela ficou ali, não sabia o que dizer, surpresa. Seu nome era ­­­Celso, apresentou-se. Ele tinha cerca de 1,80m, o rosto muito branco e liso, os olhos de um azul incomum, a barba cerrada, cabelos louros, fartos, o smoking impecável. Cheirava a um perfume que não conhecia – apesar de Carlos e Eugênio terem uma coleção infindável deles –, mas que a embevecia a ponto de sentir-se tonta. Quando deu por si estava dançando ao som de “Because of You”, uma de suas preferidas. Pensou que era a música ideal para aquele momento, embora não soubesse explicar por que. Celso não dizia palavra. Trazia-a bem rente ao peito, o braço justo em sua cintura, a mão sustentando a sua com delicadeza. Não colaram os rostos, aquilo não seria direito, mas às vezes sentia no seu um roçar do dele, de leve, que a fazia estremecer e ficou com medo que ele percebesse seu destempero. Não trocaram uma palavra. Ao final, Celso agradeceu a dança, beijou-lhe a mão e desapareceu no meio dos convidados. Ela ficou atônita, demorou alguns segundos para se situar e voltar à mesa de seus pais.
Seu pai tirou-a para dançar e ela não pôde deixar de comparar o desconforto que o rosto colado dele provocava nela. Depois foi Ronaldo, Carlos, e Eugênio, e José. Sua mãe estava exultante. E ela se flagrava procurando por Celso. Meia-noite chegou, a cerimônia das debutantes foi um sucesso. Com a desculpa de ir ao toalete, ela saíra, por três vezes, à procura de Celso, em vão. Chegou a pensar que tinha sonhado. Tampouco Anita o tinha visto novamente. Nunca mais o viu.
Sua vida, dali para frente foi uma eterna saudade. Formou-se professora no Instituto de Educação, lecionava no próprio Imaculada Conceição e acabou se casando com José. Não tiveram filhos, ele trabalhava muito na padaria que herdara do pai e não gostava mais de sair. Ela se contentava em assistir à TV e visitar os pais. Ronaldo e Carlos se casaram, Eugênio entrou para a Marinha Mercante. Às vezes ia sozinha ao Cine Ópera, na Praia de Botafogo, na esperança de encontrar Celso. Inventava compras em Copacabana, na Cidade – ficava horas sentada na Confeitaria Colombo – e mesmo idas ao Sírio e Libanês e ao Fluminense, tudo em vão. Suas amigas também haviam se casado, tinham filhos e ela preferia não tocar neste assunto com elas. Uma vez tentou, com Anita – que, afinal, era a única que tinha visto Celso –, mas ela lhe pediu que tirasse isto da cabeça. E ele ficou só na sua lembrança.
José morreu de infarto, deixando-lhe o conjugado na Glória, e a padaria cheia de dívidas, tantas que teve que vendê-la. Seus pais faleceram, seus irmãos se aposentaram, Carlos morava na Tijuca e Ronaldo no Grajaú. Eugênio foi para Roraima e nunca mais se ouviu falar dele. Suas amigas vivem para os filhos e maridos. Ela, aposentada, foi morar no conjugado, com Xiquinha, e suas poucas lembranças.
Naquela noite foi até à padaria da Rua Santo Amaro, assim faria um pouco de exercício. Encontrou uns conhecidos que teimavam em ficar por ali naquela feira de miseráveis em frente ao Palácio São Joaquim. Entrou na padaria, cumprimentou o José (será que todos são josés?). Enquanto esperava, teve a impressão de que no rádio estava tocando “Because of You”, mas percebeu que era só na sua cabeça; olhou pelo espelho e viu um homem parado na porta, olhando fixamente para ela. Aqueles olhos... Celso! Voltou-se rapidamente, sua cabeça girando – “because of you there’s a song in my heart”-, um sorriso largo nos lábios – “it’s paradise to be near you like this” –, o coração a sair pela boca. Caiu. José correu, mas já era tarde. Quando a ambulância chegou perguntaram o que havia acontecido, ele disse que quando ia entregar o pão a ela, Dona Elisa se virou bruscamente, com um sorriso nos lábios, como se tivesse visto alguém conhecido, mas não tinha ninguém atrás dela, coitada.

Um comentário:

Héllen disse...

Acabei de ler...
forte, muito forteesta história toda...amei. Teu estilo me lembrou um pouco o do Érico Veríssimo...
Verdade: não pare de escrever nuuuunca, rs!