domingo, 12 de outubro de 2008

Serviço de Utilidade

Era seu melhor amigo e estava ali, deitado, morto. Tentara fechar seus olhos, mas achou melhor que ficassem abertos, pois pareceria que ele estava vivo. Tentou chorar, mas faltavam-lhe sentimentos e suas lágrimas haviam secado havia muito tempo. Era quase de manhã, naquela hora que o sol começa a nascer e o corre-corre da cidade fica intenso. Não podia sair dali, o amigo tinha sido atropelado, não por culpa do motorista, coitado, foi pura imprudência. Ele bem que gritou, mas o amigo parecia meio bêbado, ou faminto, fraco, sabe-se lá por que não atendeu. Foi uma pancada só, seca. O rapaz saiu do carro apavorado, “não deu tempo, a culpa não foi minha, o senhor viu que ele atravessou correndo!”. Ele havia visto sim e desculpou o homem, que foi embora. Ficaria elas por elas: ele não daria queixa, nem o homem cobraria pelos amassados na lataria. Era justo, pensou. Arrumou o corpo, ficou em dúvida sobre o que fazer, afinal os dois andavam pelas ruas há tanto tempo, ninguém se interessava por eles. Deixa ficar, depois ele achava uma solução. Deitou-se ao lado do corpo, não muito perto porque ele ia começar a ficar gelado e aquele frio passa pelo chão e chega em tudo que estiver perto; também preferia não olhar pra ele, pois as lágrimas que já não tinha ficavam ardendo nos olhos. Lembrou-se de como o conheceu, zanzando ali pela orla da Lagoa, e de como se davam bem. Nunca brigaram! Eram como a mão direita e a esquerda; suas trocas de olhares valiam mais que mil palavras que, aliás, nem diziam. Todos achavam estranha aquela dupla, mas também não se negavam a ajudá-los. Não passavam fome nem frio. Andavam para lá e para cá, dia e noite, às vezes tomavam banho, às vezes, de madrugada, iam à praia, entravam no mar, felizes da vida. Quando ganhava um dinheiro, ficava logo bêbado e desandava a falar feito doido, o amigo com aquele olhar atento (ele aposta que nunca escutou) e era bom, porque como ele não se metia na sua vida, ele acabava desabafando sem ter que ouvir opiniões que não gostaria sobre como ele abandonou tudo e foi morar na rua, de como todos os amigos se afastaram quando ele perdeu tudo, de como a família nunca mais quis saber dele (às vezes via sua filha ou sua ex-mulher passando de carro, mas se escondia atrás dos arbustos para que elas não o vissem assim, acabado). Fora tão rico que nem podia contar o dinheiro; nunca havia se preocupado com nada, todos faziam tudo para ele – desde a mãe até a secretária, passando pela mulher e filha e alguns amigos. Amigos... Nunca comprou uma peça de roupa, um par de sapatos, presentes para os aniversariantes e para os que tinha que paparicar. Era só estalar os dedos que todos se agitavam “pois não, doutor!”, “o que foi, amor?”, “diga lá, papai!”, “fala aí, meu irmão!”, “diz, que mamãe faz...”. Hipócritas! Levantou-se e começou a gritar uma espécie de uivo, mas logo se deu conta de que poderia chamar a atenção e sentou-se novamente. Nojentos! Ele devia saber, mas estava cego pelo poder de sedução que tinha e conseguia convencer até o papa, se ele tivesse que ser convencido. Aumentou seu capital cem, mil vezes, nem se lembrava! Sua secretária era apaixonada por ele, desde sempre, e foi a única que foi visitá-lo na prisão. Ela sempre dizia que se ele quisesse, quando saísse dali poderia morar com ela. E ele não quis, ficou com vergonha até da secretária, quem diria. Aliás, nunca mais a viu, apesar de às vezes pegar umas caronas até perto de onde ela morava, mas não a encontrou. Não lhe sobrara um tostão, um bem que fosse; levaram tudo, todos levaram tudo, a mulher ameaçou chamar a polícia quando ele tentou entrar na sua casa para pegar umas roupas. A filha olhou para ele com cara de nojo, a mãe não queria vê-lo em hipótese alguma. Os amigos... A causa de tudo foi justamente aqueles amigos: “Alfredo, vamos entrar nessa, é a bola da vez, vamos ganhar dinheiro como nem você nunca viu!” Idiota! Como ele foi idiota, ele que era um executivo respeitado pela sua capacidade de farejar dinheiro onde ninguém sequer imaginava. Levantou-se de novo e começou a chutar o chão, suas latas, quase chuta o corpo do amigo. Sentou-se de novo. Tomaria uma garrafa todinha de cana, mas não tinha uma. O dia estava claro agora, a cidade acordava, o barulho era insuportável ali na beira da rua. Chegaram os rapazes da limpeza urbana, varrendo as calçadas, ele foi até eles pedir um trago de cachaça, eles sempre têm. “Cadê Heitor?”, perguntou o gari. Morreu de madrugada, ele respondeu limpando a cachaça com as costas imundas da mão. “Morreu de que, rapaz?”. Atropelado, o corpo está ali no meio daquele canteiro. “E tu vai fazer o que, homem?”. Não sabia, nem chorar conseguia. “Se tu quiser, a gente enterra ele”. Estava bem, mas tinha que fechar os olhos dele primeiro e ele tinha que se despedir. “Vai lá então, enquanto eu pego um saco pra botar ele”. Quando olhou o companheiro, assim, à luz do dia, veio uma lágrima nos seus olhos e ele conseguiu dizer adeus, Heitor. Seus olhos não fechavam mais. Pegou-o no colo, enfiou-o naquele saco preto e entregou ao gari, que comentou: “Êita, que isto aqui tá virando cemitério de cachorro! Já faz bem uns quatro que eu enterrei aqui”. Agradeceu ao gari e saiu em direção à Avenida, ia tentar pegar uma carona até Vila da Penha, para ver se encontrava a sua secretária...

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