domingo, 12 de outubro de 2008

Dia após dia


Sabe quando você começa a chorar assim, do nada? Convulsivamente? Vem alguém e diz pra você ir ao centro espírita, porque só pode ser encosto? “Conheço um caboclo que é tiro e queda!”. Esta expressão, nos dias de hoje, pode aumentar ainda mais a intensidade do choro, mas, no fundo, no fundo, você sabe que não é encosto. No fundo você sabe que aquilo é porque o seu pote está “até aqui de mágoa”. E a gota d’água chegou como uma enchente.
E você vai pra casa, que embora aconchegante, está vazia; e você se senta numa poltrona, a mais confortável, e chora e chora. Quando seus olhos estão como que atingidos por um enxame de marimbondos, você “liga” o videotape da sua vida e então começa a esquadrinhar para entender o por que daquela desgraça.
E como tem coisa! Aquele dia em que sua prima te expulsou da casa dela porque achou que você tivesse pisado no dedinho do seu priminho (e não tinha); quando sua tia te expulsou da casa dela porque você não atendeu ao primeiro chamado (porque você não ouviu); aquele dia que você chegou no colégio com os olhos inchados e com os braços machucados, morrendo de vergonha por ter levado uma surra que até hoje você não sabe por que foi; quando seus “amigos” debochavam de você porque você não era do mesmo nível social que eles e você nem desconfiava; e outros debochavam porque você usava roupas e sapatos de doação; quando a mãe da sua “amiga” te expulsou da casa dela porque a mãe dela havia dito que você estava “pegando” homem durante a festa da noite anterior (e não estava); quando a mãe de um pobre coitado, drogado, te expulsou da casa deles porque ela achou que você era mais drogada que ele (e não era); quando a mãe de uma outra “amiga” te expulsou porque você falava muito palavrão (falava mesmo); quando o pai do seu amigo te expulsou, dizendo que você era prostituta (e não era); quando suas “amigas” te expulsaram da casa delas, dizendo que não queriam mais você por ali; quando você percebeu que nunca teve uma família porque você não era para ter nascido; quando todos os seus “amigos” se casaram e nenhum te convidou; quando você monta seu primeiro apartamento sozinha e um “amigo” lhe dá panelas furadas e amassadas de presente “porque ia jogar fora mesmo”; quando o mesmo “amigo” joga fora uma litogravura sua, valiosa, achando que “fosse lixo”; quando sua chefe disse que você “não é das mais burras”; quando o seu outro chefe não confia no trabalho que você faz há trinta anos e pede pra chamar alguém “mais qualificado”; quando você gostaria de estar no Paraíso, mas está na Avenida Rio Branco, esquina com Ouvidor, com um calor de 43ºC à sombra, conseguindo desviar do escarro, do mendigo, do camelô, do buraco, do cocô, da polícia, do trânsito, da gritaria, do assalto, do tiro; quando você se desespera porque o salário não vai ser pago em dia; quando você tem que pedir para os credores esperarem e vê na cara deles que não estão acreditando em você; quando você é honesta e é considerada “uma otária”; quando você trata bem as pessoas e, de novo, é chamada de “otária”; quando você vai consultar seu saldo e não tem mais um tostão...
.........

Sabe quando você começa a chorar convulsivamente, porque as coisas vêm acontecendo há anos e até hoje você não conseguiu mudar?
Então você sai para a rua cheia de escarros, de mendigos, de buracos, de cocôs, de assaltos, de polícia, de tiros, sem saldo, os olhos inchados, com cara de otária...

Nenhum comentário: