terça-feira, 28 de outubro de 2008

Ho-ménage-m

Em 2005, recebi, por e-mail, uma crônica que teria sido publicada no Jornal do Brasil, de autoria da Danuza Leão, intitulado “Se eu pudesse”. Na época achei (como acho até hoje!) um acinte que as pessoas usassem o espaço que lhes é dado nos meios de comunicação para falar com seus pares, e só com eles.

Hoje, tentando localizar exatamente a data da publicação da matéria, vi que ela foi publicada no mês de setembro de 2008, na Folha de S. Paulo. Claro que fiquei com todas as pulgas atrás de todas as minhas orelhas! Continuo sem entender...

Deixo claro que sempre fui fã da Danuza; nada contra ela. Idiossincrasias, por que não tê-las?

Mas, a partir daquele original, fiz uma, digamos, infelicidade adaptada. Na época me pareceu cabível; hoje, muito mais. Se pudéssemos – principalmente depois de entrados em anos – mudaríamos muitas coisas, como já dizia Borges.

O original, que recebi da minha amiga Bia Kushner, está em <http://www.udemo.org.br/Leituras_258.htm>. Aqui, o meu próprio, o do B.


Se eu pudesse (o outro)

Seu eu pudesse, mudava minha vida toda; ela é muito ruim e queria ver se ela podia ser diferente.

Se eu pudesse, me desfaria de muitas coisas: da mãe doente, dos filhos marginais, do marido bêbado e... compraria roupas. Afinal, eu só preciso de um par de sandálias, um jeans, duas blusas, sobretudo agora que ando pensando em mudar de vida...

Queria ir à praia num primeiro de janeiro, enfiar a mão na areia e ter a felicidade de encontrar um colar de brilhantes. Quem perdeu pode viver sem, não pode?

Das garrafas de cachaça, escondidas tão cuidadosamente do meu marido, no fundo do quintal, daria para abrir mão, mesmo sentindo remorso; sidra, além de engordar, nem barato dá, de tão artificial que é. Aquele vinho de 5 reais é mais fácil ainda. Eu vou abrir e descobrir que virou vinagre mesmo e vou chegar à conclusão de que nada melhor que o velho e bom conhaque, com o qual sempre se pode contar.

E as amizades? Amizades mesmo, porque nunca tive relações. Ah, se eu tivesse telefone, nem precisava comprar caderninho, dá para guardar todos os nomes de cor. Eu nunca me esqueço deles mesmo.

Se tivesse emprego em outra cidade, nem precisa ser em outro país, eu ia começar do zero. Ia sofrer mais um pouco, pensando que se eu tivesse tido alguma ajuda teria errado menos e ninguém iria sofrer por isso, porque eu não tenho a capacidade de fazer alguém sofrer. Se eu fizesse alguém sofrer, seria um acontecimento a ser festejado.

Se pudesse – e não tivesse que levantar às 4 horas da manhã pra pegar o trem pra ir pro trabalho – comeria mais, iria dormir mais cedo, junto com meus queridos animais. Eu adoro bichos e crianças, mesmo os que não são meus. Tem certas coisas que não se pode não gostar, mas mesmo que não se goste, temos que agüentar. Que vida!

Se eu pudesse iria para deus-me-livre, onde ninguém me conhece, onde eu não tivesse passado nem futuro; lá em um lugar esquisito onde ninguém se entende, são todos estranhos, como quando encontro com o meus patrões no corredor e eles nem me cumprimentam.

Se eu pudesse, quando acordo de madrugada pra ir trabalhar, em vez disso ia olhar a lua, enrolada na coberta, com os pés descalços na terra fria do chão do meu barraco. Depois ia requentar o café passado ontem à noite, como sempre fiz.

Ficaria sonhando como é ter talão de cheques, cartões de crédito, casacos de pele e saber como se sentem as pessoas que têm tudo isto. No cinema as pessoas cortam os fios do telefone, jogam o celular na tela da TV e o computador pela janela, sem se importar se vai cair na cabeça de alguém; elas não têm idéia o quanto custa ganhar dinheiro para comprar essas coisas. Afinal, dinheiro não voa...

Se eu pudesse, faria mega-hair e reflexo nos meus cabelos, pararia de fumar e tomava minha cachaça no mesmo copo de geléia, como sempre fiz. Tentaria faltar ao trabalho para tirar minha carteira de identidade, o CPF e meu título de eleitor, pensando nas conseqüências de não ser uma cidadã com muito medo do futuro. Passaria devagar pelas latas de lixo na esperança de encontrar lençóis, travesseiros de pluma, cobertor e me espantaria ao encontrar pestanas postiças, afinal o que pensa da vida quem usa isto?

Seu eu pudesse, queria que todos soubessem o meu nome, o meu passado e a minha história e ia ser alguém. Alguém.

Se eu pudesse, mas nem que eu quisesse.

Pois é, quem dera eu pudesse ter dias assim; e isto não passa.

(A minha parte foi escrita em 16/10/2005.)