domingo, 5 de abril de 2009

O homem que dormia com minha mãe

Quem era aquele homem que chegava a qualquer hora, de camiseta regata, chinelos de couro, um imenso anel de ouro, as iniciais em relevo, com um cinto de couro marrom e uma fivela de ouro, também com as iniciais, fumando um cigarro Belmont, um palito nos dentes, as unhas compridas, feitas e pintadas de esmalte incolor... e que dormia na cama da minha mãe? Não me dirigia a palavra. Sentava-se à mesa e era servido primeiro, minha mãe parecia ter medo dele, ficávamos mudos à mesa, eu, meu irmão mais velho e minha irmã, também sete anos mais velha que eu. Um dia ele pegou meu pedaço de frango preferido. Fiz um escândalo, fui repreendida por minha mãe, que ele poderia pegar o pedaço que quisesse e eu deveria me calar. Assim como chegava, partia. A casa permanecia, ainda por umas horas, como que coberta por uma aura negra, minha mãe ia para o quarto e chorava; meu irmão ia para a rua, minha irmã voltava a ler suas fotonovelas na Capricho. Eu, estupefata, meio deslocada, mas sem deixar de pensar por que mesmo esse homem aparece e desaparece? Perguntei à minha irmã, baixinho, por que ele podia comer o “meu” pedaço de frango. “Ué, ele é o pai! Deixa de ser boba!” O pai? Não me lembrava dele, tão raras as suas visitas. Ninguém falava nele, ou dele. Depois aprendi que quando ele chegava, lá embaixo, na praça, e minha mãe dizia, como a um cachorro: “lá vem o seu pai!”, eu deveria sair correndo, como que liberta da coleira, para recebê-lo, com lambidas e abanadas de rabo, sem dizer palavra, mas sorrindo. Ele me pegava no colo e me descarregava na porta de casa. Mas não falava comigo. 

Numa tarde morna de final de verão, estava eu, depois do almoço, alvoroçada como convém a uma criança de cinco anos. Minha mãe ouvia a Rádio Nacional lá de seu quarto, deitada; minha irmã sentada na cama, com suas fotonovelas. Resolvi implicar com ela, mal sabendo que estava interrompendo um ritual. Ela se irritou com as brincadeiras e a uma certa altura gritou: “mãe, olha ela me perturbando!”. Saí rindo em direção à minha mãe, orgulhosa das minhas travessuras. Ato contínuo, ela gritou também, para mim: “bem que quando seu pai queria que te matasse não era à toa, não!”. Estanquei. O sorriso que tinha nos lábios se foi. “Matasse”? Como? Aquele homem queria me matar? Por que? O que eu havia feito? Murchei como um buquê, daqueles que ficam em cima de sepulturas, ao sol. Minha irmã falou que ainda não era hora de eu saber. Quando mais velha soube que “meu pai” era motorista de caminhão; numa dessas paradas em casa, engravidou minha mãe. Mas já tinha uma mulher no Rio. Fui sua desculpa: “esta criança não é minha, melhor tirar!”. Melhor me matar. 

Outro dia, num asilo onde o descobri, aos 87 anos, sozinho, jogado lá por uma de suas mulheres, quase cego, murcho, sua pose havia desaparecido. Consegui conversar algo sobre minha infância. Ele disse que eu tinha medo dele e ele não sabia porquê. Eu disse que possivelmente ainda tenho, porque não consegui ir a lugar nenhum na minha vida. Num domingo de visitas eu finalmente falei! Querido pai: você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Quer saber?, perguntei, cínica, enquanto cortava suas desleixadas unhas.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Quem me dera...

Existem dois poemas de Fernando Pessoa (Alberto Caieiro) que descrevem de maneira esplêndida o meu estado de espírito depois de ter assistido ao filme Revolutionary Road. Explico depois.

[223]

“Quem me dera que eu fosse o pó da estrada

E que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que eu fosse os rios que correm

E as lavadeiras estivessem à minha beira...

[...]

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro

E que ele me batesse e me estimasse...

 

Antes isso que ser o que atravessa a vida

Olhando para trás de si e tendo pena...”

 

 

[221]

“Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois

Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,

E que para de onde veio volta depois

Quase à noitinha pela mesma estrada.

 

Eu não tinha que ter esperanças – tinha só que ter rodas...

A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...

Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas

E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.”

 

 

Há anos (tenho 59... então, pelo menos, há 52) venho trazendo um sentimento de raiva que, por (civilidade? educação? incapacidade?) algum motivo não consegui tirar de dentro de mim. Já fui o burro do moleiro que me batia (mas que não me estimava, porque, então(?), eu não servia para nada) e hoje sou o carro de bois. Nem os bois, mas o carro. (Às pessoas urbanas: um carro de bois era feito de madeira maciça, com rodas de madeira maciça, circundadas por um elo de ferro, para que não se quebrassem com o passar do tempo. As duas rodas eram fixadas ao carro por um eixo que fazia com que o atrito do carro com as rodas produzisse um “chiado”, quase um lamento.) Eu, quando criança, que saía a passear pelos matos e andava nos carros de bois, já pensava que aquilo era muito triste, aquele chiado e aqueles bois, lentos, submissos, assim como o rapaz que os guiava, que não dizia palavra. Às vezes passava por algum lugar onde jazia, exatamente como nesta imagem de Caieiro, um carro de bois, partido, apodrecido, sem as rodas, tomado pelo mato, deixado lá para que virasse nada.

“Não tinha que ter esperanças”, e fui embora. Então passei a ser o pó onde todos pisavam, o rio, onde as lavadeiras ficavam, de novo o burro do moleiro, que apanhava. Depois, ainda sem as tais esperanças, pensava por que não tinha acabado com aquilo tudo antes, pelo menos não iria ter rugas nem cabelos brancos. E passei a ser o que olha para trás de si e sente pena. Ainda não tendo conseguido acabar com aquilo, agora tenho raiva. E não é pouca. E choro muito, não mais de pena, mas de raiva. Sou muito covarde para um suicídio! Nem tenho coragem de confessar que sou covarde! Mas tenho medo. Os acordares são torturas! Mais um dia de raiva, menos um dia de vida. Não queria voltar à noitinha pela mesma estrada; e aquele chiado... Queria mudar, ter outras estradas para voltar à noitinha. Mas como, se não tenho esperanças!? Nem consegui ter rodas! Nem um moleiro que me bata, mas que me estime. E sou covarde. E não sei escolher caminhos. Restam apenas as penas...
(continua)

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Quando a pedra atirada voltará, inevitavelmente...

Estava lendo uma matéria num site de relacionamento, “O preconceito nosso de cada dia”, mas me ocorreu que há um preconceito que, mais dia, menos dia, todas irão enfrentar. A idade.

Para os jovens (todos), pessoas com mais de 30 anos (ou 25?) são consideradas “dinossauros”, “aquela coroa”, “ih, sucata” e coisas quetais. Como é notório, os jovens sabem TUDO e pensam que o mundo foi inventado quando surgiu o primeiro PC . Antes disto, tudo eram trevas.

As lésbicas de hoje, assumidas e bem-resolvidas (quase todas), não têm idéia do que a gente passou, nas décadas de 60 e 70 (minha época), ou o que outras lésbicas “históricas” passaram para que vocês, jovens, tivessem esta liberdade. Se eu dissesse que era lésbica, em 1968, quando eu tinha 19 anos, seria expulsa da cidade! Se eu gostasse de uma menina, teria que namorar o irmão dela pra poder ficar pelo menos por perto e assim poder fazer amizade com ela. Mas intimidades, nem pensar! Eu frequentava uma turma de rapazes – principalmente por não me identificar com os pensamentos “cinderélicos” das minhas amigas – e era considerada uma prostituta, pois fumava, falava palavrão, bebia e ficava pela rua nas madrugadas.

Depois me mudei para o Rio e a primeira namorada que tive era oito anos mais velha que eu. Eu tinha 26, ela 34. Foi mesmo a minha primeira namorada. Durou três anos. Aí eu já tinha 29 anos. Depois dos 30, freqüentávamos, em Ipanema, um bar chamado Pizzaiollo, conhecido por ser um “reduto” de lésbicas. Ali, as pessoas paravam na calçada para ficar nos observando, como se fôssemos peixes de aquário (ou bestas do Apocalipse?!), as senhoras colocando a mão na boca, se benzendo, os homens fazendo “ts, ts, ts”, e comentando “elas são assim porque não foram bem fodidas!”.

Acabei ficando mais amiga de gays homens do que das mulheres, pois elas viviam escondidas, quando se casavam se encerravam em casa, e só frequentavam outros casais lésbicos. Aí se formava uma “panela” difícil de penetrar. E também, e principalmente, porque eu já havia passado dos 30 anos. Foi aí que as coisas começaram a se complicar; pela rejeição que já então sentia, comecei a engordar feito uma louca, a beber muito para ser simpática, sem me dar conta de que isto me afastaria mais e mais das lésbicas, fosse qual fosse a idade. Procurava sempre pelas mais velhas, mas emperrava no quesito “mais pobre”. As lésbicas que se assumiam eram ricas e/ou famosas ou artistas. (Conheci juízas, promotoras, delegadas, advogadas, mas que não saíam do armário nem pra tomar um arzinho, embora fizessem aquele gênero que as pessoas rotulavam de butcher, dyke, sapatão ou coisa que o valha!).

Comecei a fazer análise, melhorei um pouquinho, mas, como naquela comunidade do Leskut – e então eu já entrava nos 40 –, não sabia “chegar em minas”. Sempre me apaixonava pela pessoa errada, nunca deixava claras as minhas intenções, às vezes (pelo menos duas) as “minas” quiseram ficar comigo e eu desconversei, pois elas eram mais jovens que eu, e eu era gorda e boba. Ou seja, acabei traumatizada e mais gorda!

Hoje tenho 59 anos, continuo solteira, me relacionei, por duas vezes, com uma mesma garota, hoje com 35 anos. Mas há cinco anos resolvi fazer a cirurgia de redução de estômago, emagreci 45 kg, melhorou bem a minha cabeça, minha auto-estima, mas o trauma ainda está lá. Continuo na análise, de onde, penso eu, não poderei sair tão cedo!

Há um barzinho superagradável, de novo em Ipanema. Gosto de ir lá, o espaço é pequeno e quando me sento, sempre sozinha, em uma mesa onde só cabem duas pessoas e chegam duas meninas e não tem mais lugar, sinto-me fulminada. Já chegaram a me perguntar se “a senhora vai demorar muito” ali. A gerente morre de rir, diz pra eu não me preocupar, elas que se virem... Mas, sinceramente, é muito desagradável. Daí que vou me trancando, não só em casa, como emocionalmente. Quando me chamam de senhora no MSN, então...

O pior(?!) é que não sou uma pessoa desagradável, sou inteligente, simpática, bem humorada, culta, não gosto de confusão, baixaria, e nunca reclamaram (pelo contrário!) do meu desempenho na cama. Mas aí já é outro assunto... e sabedoria conta!

Então fico pensando, e jogo a pergunta para vocês: será que a defeito é meu, por não saber chegar em minas, ou é das minas, que não deixam o caminho sinalizado?

Um relacionamento muda tudo

Por me relacionar com pessoas extremamente inseguras e, consequentemente, ciumentas, eu mudei. Ficou assim: meus amigos não gostavam delas, então desapareceram; os (poucos) amigos delas, não gostavam de mim, então desapareceram. E o relacionamento nosso, por ser uma coisa tipo “só terei olhos para você e você só terá olhos para mim”, acabou minando a coisa.
Por azar meu, sou essencialmente monogâmica e não sou ciumenta. Confiava quando elas diziam que “um(a) amigo(a) estava querendo conversar”, ou “não posso te levar no casamento de fulano porque ele não sabe que sou gay”. Resultado: todas foram infiéis. Eu não podia me encontrar com meus amigos, mas elas podiam - e faziam - o que queriam, inclusive me trair com as ex, ou o que viesse pela frente. E eu só viria a descobrir quando a coisa já estava rolando há tempos. Aí, como sou de Escorpião, fez uma vez, não vai fazer de novo. Fazia minha malinha e adeus!
Mas, tenho que confessar: mudei e me dei mal. Me afastei de pessoas das quais gostava muito e a volta nunca foi a mesma coisa. E às vezes, realmente, sua companheira não tem um milésimo a ver com as suas amigas. E elas fazem questão de fazer aquela cara de “boring” quando precisamos estar no mesmo ambiente.
Enfim, acho normal mudar; acho que todo mundo muda um pouco. E quando a gente começa a querer retomar o jeito antigo é porque a relação já está pra lá de desgastada. Aí é hora de mudar mesmo.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

A separação mesmo!

Há dois dias fui comunicada pela pessoa com quem convivi, entre idas e vindas, por quase oito anos, que ela estava indo embora da cidade. Tratei aquilo com civilidade(!), dei opiniões sobre a mudança, a venda do apartamento etc. Ao desligar o telefone, comecei a chorar... E desde então tenho sentido como que um vaziozinho no fundo do peito, uma sensação ruim, ando mal humorada. 
Já não tínhamos mais nada, mas somos amigas. Mesmo porque passamos por poucas e boas - desde fome até a fartura. 
Hoje nos falamos e eu disse: - Puxa, você vai embora e eu não vou ter mais com quem conversar. - Ah, disse ela, eu não vou me despedir de você, não quero, senão vou chorar! 
E ficamos assim combinadas: não nos encontraremos mais, conversa, só por telefone. 
À tarde, quando estava indo para a análise, a primeira pessoa que encontro na rua... Pois é. Foi rápido. Um oi e um tchau! E chorei de novo.