"Quando há dias, no terraço de Savran, ao anoitecer, te queixavas que eu contemplasse as estrelas estando tão perto dos teus olhos, e espreitasse o adormecer das colinas junto ao calor dos teus ombros – não sabias, nem eu te soube então explicar, que essa contemplação era ainda um modo novo de te adorar, porque realmente estava admirando, nas coisas, a beleza inesperada que tu sobre elas derramas."
sexta-feira, 31 de outubro de 2008
Demais...
terça-feira, 28 de outubro de 2008
Ho-ménage-m
Em 2005, recebi, por e-mail, uma crônica que teria sido publicada no Jornal do Brasil, de autoria da Danuza Leão, intitulado “Se eu pudesse”. Na época achei (como acho até hoje!) um acinte que as pessoas usassem o espaço que lhes é dado nos meios de comunicação para falar com seus pares, e só com eles.
Hoje, tentando localizar exatamente a data da publicação da matéria, vi que ela foi publicada no mês de setembro de 2008, na Folha de S. Paulo. Claro que fiquei com todas as pulgas atrás de todas as minhas orelhas! Continuo sem entender...
Deixo claro que sempre fui fã da Danuza; nada contra ela. Idiossincrasias, por que não tê-las?
Mas, a partir daquele original, fiz uma, digamos, infelicidade adaptada. Na época me pareceu cabível; hoje, muito mais. Se pudéssemos – principalmente depois de entrados em anos – mudaríamos muitas coisas, como já dizia Borges.
O original, que recebi da minha amiga Bia Kushner, está em <http://www.udemo.org.br/Leituras_258.htm>. Aqui, o meu próprio, o do B.
Se eu pudesse (o outro)
Se eu pudesse, me desfaria de muitas coisas: da mãe doente, dos filhos marginais, do marido bêbado e... compraria roupas. Afinal, eu só preciso de um par de sandálias, um jeans, duas blusas, sobretudo agora que ando pensando em mudar de vida...
E as amizades? Amizades mesmo, porque nunca tive relações. Ah, se eu tivesse telefone, nem precisava comprar caderninho, dá para guardar todos os nomes de cor. Eu nunca me esqueço deles mesmo.
Se eu pudesse iria para deus-me-livre, onde ninguém me conhece, onde eu não tivesse passado nem futuro; lá em um lugar esquisito onde ninguém se entende, são todos estranhos, como quando encontro com o meus patrões no corredor e eles nem me cumprimentam.
Se eu pudesse, quando acordo de madrugada pra ir trabalhar, em vez disso ia olhar a lua, enrolada na coberta, com os pés descalços na terra fria do chão do meu barraco. Depois ia requentar o café passado ontem à noite, como sempre fiz.
(A minha parte foi escrita em 16/10/2005.)
segunda-feira, 13 de outubro de 2008
Sou TRI!!!
domingo, 12 de outubro de 2008
Quem são nossos heróis
Vi vendo e desaprendendo
Este Robert é muito legal...
The following is an Open Letter to Dr. Laura penned by a US resident:
Dear Dr. Laura:
Thank you for doing so much to educate people regarding God's Law. I have learned a great deal from your radio show, and I try to share that knowledge with as many people as I can. When someone tries to defend the homosexual lifestyle, for example, I simply remind them that Lev. 18:22 clearly states it to be an abomination. End of debate. I do need some advice, however, regarding some of the specific Bible laws and how to best follow them.
a) When I burn a bull on the altar as a sacrifice, I know it creates a pleasing odor for the Lord (Lev. 1:9). The problem is my neighbors. They claim the odor is not pleasing to them. Should I smite them?
b) I would like to sell my daughter into slavery, as sanctioned in Exod. 21:7. In this day and age, what do you think would be a fair price for her? She's 18 and starting University. Will the slave buyer continue to pay for her education by law?
c) I know that I am allowed no contact with a woman while she is in her period of menstrual uncleanliness (Lev. 15:19-24). The problem is, how do you tell? I have tried asking, but most women take offense.
d) Lev. 25:44 states that I may possess slaves, both male and female, provided they are purchased from neighboring nations. A friend of mine claims that this applies to Mexicans, but not to Canadians. Can you clarify? Why can't I own Canadians?
e) I have a neighbor who insists on working on the Sabbath. Exod. 35:2 clearly states he should be put to death. Am I morally obligated to kill him myself, or should this be a neighborhood improvement project?
f) A friend of mine feels that even though eating shellfish is an abomination (Lev. 11:10), it is a lesser abomination than homosexuality. I don't agree. Can you settle this?
g) Lev. 21:20 states that I may not approach the altar of God if I have a defect in my sight. I have to admit that I wear reading glasses. Does my vision have to be 20/20, or is there some wiggle room here? May I approach the altar wearing contact lenses?
h) Most of my male friends get their hair trimmed, including the hair around their temples, even though this is expressly forbidden by Lev.19:27. How should they die?
i) I know from Lev. 11:6-8 that touching the skin of a dead pig makes me unclean, but may I still play football if I wear gloves?
j) My uncle has a farm. He violates Lev. 19:19 by planting two different crops in the same field, as does his wife by wearing garments made of two different kinds of thread (cotton/polyester blend). He also tends to curse and blaspheme a lot. Is it really necessary that we go to all the trouble of getting the whole town together to stone them?(Lev. 24:10-16). Couldn't we just burn them to death at a private family affair like we do with people who sleep with their in-laws? (Lev. 20:14).
I know you have studied these things extensively, so I am confident you can help. Thank you again for reminding us that God's word is eternal and unchanging.
Your devoted follower and adoring fan.
Robert
O Encontro
Serviço de Utilidade
Dona Elisa
Às vezes ficava, à noite, olhando pela janela, olhos fixos no horizonte, a mente em devaneios. As lembranças iam e vinham. O Rio, que já não reconhecia, havia proporcionado a ela momentos inusitados.
Nascera em Botafogo, numa casa de vila na Rua Assunção; era a caçula de quatro irmãos. O pai, dr. Augusto, advogado, um funcionário público federal, a mãe professora primária. Os irmãos Carlos e Eugênio – gêmeos – eram o terror da vizinhança, mas num bom sentido. Eram muito alegres, promoviam festas em quase todos os finais de semana no Sírio e Libanês. Ronaldo, o mais velho, bonito, era mais sério, tinha feições sisudas como o pai, com uma vasta cabeleira negra que mantinha habilmente no lugar a poder de brilhantina. Ela, Elisa, saiu meio tímida, com muito charme, como a mãe, Dona Dorothéa, que não saía de casa sem brincos e batom. As amigas, poucas, moravam na vila e arredores, todas – sem exceção – suspirando por Ronaldo, que as ignorava. Sua paixão era José, filho único de seu Diamantino, o português dono da padaria. José era amigo dos gêmeos e freqüentava sua casa diariamente, pois era membro do comitê organizador das festas que Carlos e Eugênio insistiam em promover. Depois soube que o intuito era manter um “excedente” de namoradas, o que a deixou muito magoada, pois tinha José em alta conta.
Aos 15 anos, na primavera de 1954, participou do baile de debutantes no Fluminense. Era presente de seu pai, por ser uma menina sossegada, afeta às tarefas domésticas, com excelentes notas no Colégio Imaculada Conceição, almejando ser professora, como a mãe.
Naquele sábado estava tão nervosa que decidiu não se aborrecer. Só ouvia Carlos e Eugênio reclamando que seus smokings não estavam bem passados, que não sabiam dar o laço na gravata, que os sapatos estavam apertados – Eugênio insistia que deveria usar ligas para que suas meias ficassem perfeitamente esticadas, o que provocou a ira de Carlos por achar que era coisa de “fresco”, o que, por sua vez, provocou a ira de seu pai por Carlos falar certas palavras em casa. Ronaldo não se abalava, era do tipo que deixava todas as peças do vestuário que iria usar cuidadosamente esticadas em cima da cama – da gravata às meias.
Ela permanecia em cima de um banquinho, as costureiras em volta, arrematando aqui e ali. Dona Dorothéa, nervosa, passava a fita de cetim que Elisa iria usar nos cabelos, que ainda não estavam penteados porque preferira deixar o cabeleireiro e a manicure por último. Ao fundo, o rádio ligado no Programa César de Alencar, que anunciava para dali a pouco a presença do “brotinho” Francisco Carlos, de quem era fã ardorosa.
Dr. Augusto insistia em assistir à TV, pela novidade da invenção, e se esquecera de fazer cabelos e barba. Foi às pressas para a barbearia do Cristóvão, com quem discutia política, ainda comentando, com pesar, o suicídio de Getulio Vargas, o que, nas suas opiniões, iria conduzir o país a uma inevitável derrocada.
Às 10 horas em ponto ela entrou no clube, já muito cheio. A orquestra de Severino Araújo tocava “In the Mood”, bem ao estilo Glenn Miller, que ela adorava. Não conseguia esconder a excitação que aquele evento provocava nela. O burburinho era muito grande, e pediu licença para ir retocar a maquiagem. No caminho deparou com um rapaz, totalmente desconhecido, que a olhava fixamente. Vasculhou sua memória, mas não conseguiu se lembrar de tê-lo visto antes, nem nas costumeiras festinhas de Carlos e Eugênio. E também não entendeu por que isto estava tomando seu tempo, já que o evento da noite era o que mais deveria estar lhe ocupando. Encontrou Anita, sua amiga da rua, e perguntou se ela tinha visto aquele moço. Anita espiou pela fresta da porta e negou que o conhecesse, mas ele era “um pedaço de homem”, disse, rindo.
Ao sair, o rapaz veio ao seu encontro, e convidou-a para dançar. Anita deu um gritinho histérico e saiu correndo para o salão. Ela ficou ali, não sabia o que dizer, surpresa. Seu nome era Celso, apresentou-se. Ele tinha cerca de 1,80m, o rosto muito branco e liso, os olhos de um azul incomum, a barba cerrada, cabelos louros, fartos, o smoking impecável. Cheirava a um perfume que não conhecia – apesar de Carlos e Eugênio terem uma coleção infindável deles –, mas que a embevecia a ponto de sentir-se tonta. Quando deu por si estava dançando ao som de “Because of You”, uma de suas preferidas. Pensou que era a música ideal para aquele momento, embora não soubesse explicar por que. Celso não dizia palavra. Trazia-a bem rente ao peito, o braço justo em sua cintura, a mão sustentando a sua com delicadeza. Não colaram os rostos, aquilo não seria direito, mas às vezes sentia no seu um roçar do dele, de leve, que a fazia estremecer e ficou com medo que ele percebesse seu destempero. Não trocaram uma palavra. Ao final, Celso agradeceu a dança, beijou-lhe a mão e desapareceu no meio dos convidados. Ela ficou atônita, demorou alguns segundos para se situar e voltar à mesa de seus pais.
Seu pai tirou-a para dançar e ela não pôde deixar de comparar o desconforto que o rosto colado dele provocava nela. Depois foi Ronaldo, Carlos, e Eugênio, e José. Sua mãe estava exultante. E ela se flagrava procurando por Celso. Meia-noite chegou, a cerimônia das debutantes foi um sucesso. Com a desculpa de ir ao toalete, ela saíra, por três vezes, à procura de Celso, em vão. Chegou a pensar que tinha sonhado. Tampouco Anita o tinha visto novamente. Nunca mais o viu.
Sua vida, dali para frente foi uma eterna saudade. Formou-se professora no Instituto de Educação, lecionava no próprio Imaculada Conceição e acabou se casando com José. Não tiveram filhos, ele trabalhava muito na padaria que herdara do pai e não gostava mais de sair. Ela se contentava em assistir à TV e visitar os pais. Ronaldo e Carlos se casaram, Eugênio entrou para a Marinha Mercante. Às vezes ia sozinha ao Cine Ópera, na Praia de Botafogo, na esperança de encontrar Celso. Inventava compras em Copacabana, na Cidade – ficava horas sentada na Confeitaria Colombo – e mesmo idas ao Sírio e Libanês e ao Fluminense, tudo em vão. Suas amigas também haviam se casado, tinham filhos e ela preferia não tocar neste assunto com elas. Uma vez tentou, com Anita – que, afinal, era a única que tinha visto Celso –, mas ela lhe pediu que tirasse isto da cabeça. E ele ficou só na sua lembrança.
José morreu de infarto, deixando-lhe o conjugado na Glória, e a padaria cheia de dívidas, tantas que teve que vendê-la. Seus pais faleceram, seus irmãos se aposentaram, Carlos morava na Tijuca e Ronaldo no Grajaú. Eugênio foi para Roraima e nunca mais se ouviu falar dele. Suas amigas vivem para os filhos e maridos. Ela, aposentada, foi morar no conjugado, com Xiquinha, e suas poucas lembranças.
Naquela noite foi até à padaria da Rua Santo Amaro, assim faria um pouco de exercício. Encontrou uns conhecidos que teimavam em ficar por ali naquela feira de miseráveis em frente ao Palácio São Joaquim. Entrou na padaria, cumprimentou o José (será que todos são josés?). Enquanto esperava, teve a impressão de que no rádio estava tocando “Because of You”, mas percebeu que era só na sua cabeça; olhou pelo espelho e viu um homem parado na porta, olhando fixamente para ela. Aqueles olhos... Celso! Voltou-se rapidamente, sua cabeça girando – “because of you there’s a song in my heart”-, um sorriso largo nos lábios – “it’s paradise to be near you like this” –, o coração a sair pela boca. Caiu. José correu, mas já era tarde. Quando a ambulância chegou perguntaram o que havia acontecido, ele disse que quando ia entregar o pão a ela, Dona Elisa se virou bruscamente, com um sorriso nos lábios, como se tivesse visto alguém conhecido, mas não tinha ninguém atrás dela, coitada.
Dia após dia
Sabe quando você começa a chorar assim, do nada? Convulsivamente? Vem alguém e diz pra você ir ao centro espírita, porque só pode ser encosto? “Conheço um caboclo que é tiro e queda!”. Esta expressão, nos dias de hoje, pode aumentar ainda mais a intensidade do choro, mas, no fundo, no fundo, você sabe que não é encosto. No fundo você sabe que aquilo é porque o seu pote está “até aqui de mágoa”. E a gota d’água chegou como uma enchente.
E você vai pra casa, que embora aconchegante, está vazia; e você se senta numa poltrona, a mais confortável, e chora e chora. Quando seus olhos estão como que atingidos por um enxame de marimbondos, você “liga” o videotape da sua vida e então começa a esquadrinhar para entender o por que daquela desgraça.
E como tem coisa! Aquele dia em que sua prima te expulsou da casa dela porque achou que você tivesse pisado no dedinho do seu priminho (e não tinha); quando sua tia te expulsou da casa dela porque você não atendeu ao primeiro chamado (porque você não ouviu); aquele dia que você chegou no colégio com os olhos inchados e com os braços machucados, morrendo de vergonha por ter levado uma surra que até hoje você não sabe por que foi; quando seus “amigos” debochavam de você porque você não era do mesmo nível social que eles e você nem desconfiava; e outros debochavam porque você usava roupas e sapatos de doação; quando a mãe da sua “amiga” te expulsou da casa dela porque a mãe dela havia dito que você estava “pegando” homem durante a festa da noite anterior (e não estava); quando a mãe de um pobre coitado, drogado, te expulsou da casa deles porque ela achou que você era mais drogada que ele (e não era); quando a mãe de uma outra “amiga” te expulsou porque você falava muito palavrão (falava mesmo); quando o pai do seu amigo te expulsou, dizendo que você era prostituta (e não era); quando suas “amigas” te expulsaram da casa delas, dizendo que não queriam mais você por ali; quando você percebeu que nunca teve uma família porque você não era para ter nascido; quando todos os seus “amigos” se casaram e nenhum te convidou; quando você monta seu primeiro apartamento sozinha e um “amigo” lhe dá panelas furadas e amassadas de presente “porque ia jogar fora mesmo”; quando o mesmo “amigo” joga fora uma litogravura sua, valiosa, achando que “fosse lixo”; quando sua chefe disse que você “não é das mais burras”; quando o seu outro chefe não confia no trabalho que você faz há trinta anos e pede pra chamar alguém “mais qualificado”; quando você gostaria de estar no Paraíso, mas está na Avenida Rio Branco, esquina com Ouvidor, com um calor de 43ºC à sombra, conseguindo desviar do escarro, do mendigo, do camelô, do buraco, do cocô, da polícia, do trânsito, da gritaria, do assalto, do tiro; quando você se desespera porque o salário não vai ser pago em dia; quando você tem que pedir para os credores esperarem e vê na cara deles que não estão acreditando em você; quando você é honesta e é considerada “uma otária”; quando você trata bem as pessoas e, de novo, é chamada de “otária”; quando você vai consultar seu saldo e não tem mais um tostão...
.........
Sabe quando você começa a chorar convulsivamente, porque as coisas vêm acontecendo há anos e até hoje você não conseguiu mudar?
Então você sai para a rua cheia de escarros, de mendigos, de buracos, de cocôs, de assaltos, de polícia, de tiros, sem saldo, os olhos inchados, com cara de otária...
Vices
Seu trabalho não era lá essas coisas. Ósto (que mais tarde soube ser o que seus pais entendiam por Washington) conseguiu montar uma barraca de churrasquinho, começou a vender cerveja, uma cachacinha e agora tinha como que uma birosca, perto da Central do Brasil. Conhecia todo mundo por ali, já que dois terminais rodoviários, um ferroviário e mais uma estação do metrô despejavam gente que não acabava mais. Cobradores, motoristas, policiais, guardas, seguranças, prostitutas, pequenos ladrões, grandes ladrões, mequetrefes de todos os calibres, um frege só. Mas ele não se queixava, podia ser pior.
Em casa, a mulher e dois filhos pequenos em idade escolar esperavam por ele à noite, quando chegava, lá pelas 10 horas. Cansado, tinha tempo apenas para um banho frio; eles moravam num barraco no Morro da Providência, que ele conseguira comprar a duras penas, só para ficar mais perto do local de trabalho. Antigamente morava em Belford Roxo, tinha que sair muito cedo para providenciar as carnes, os molhos e repor o estoque de cervejas no isopor com muito gelo. Sua cerveja era a melhor da Central, diziam, e não podia deixar a qualidade cair, tinha muita concorrência.
Seu vizinho, o Paulo, era flamenguista roxo, mas não “zoava” ele por causa dos vice-campeonatos. Iam ao Maracanã juntos, não vestiam as camisas dos seus times porque não queriam confusão. As duas famílias se davam muito bem, às vezes faziam uma feijoada – ele não agüentava mais churrasco – e o pagode comia solto até altas horas. Paulo também era “autônomo”, só que lá pras bandas da Lapa, embaixo dos Arcos. Com a revitalização daquela área ele estava fazendo um bom dinheiro.
As mulheres não trabalhavam fora, mas faziam sempre uma coisa ou outra para ajudar no orçamento: um bolo, uma rifa, umas costuras. Paulo tinha três filhas, ele um casal. Tinha dia que eles se encontravam no pé do Morro e ficavam ali, horas a fio, botando a conversa em dia, tomando umazinha bem gelada. Quando iam chegando em casa, uma pequena bifurcação os separava, cada um para o seu lado.
Ósto pensava que sua vida não era de todo ruim: apesar da violência, do desemprego, das desigualdades, da pobreza, do calor, do desconforto, podia até dizer que era feliz, pois não tinha problemas em casa, na rua respeitava e era respeitado, cada um sabia seu lugar. Marilene, sua mulher, nunca foi preguiçosa, cuidava bem de Ostinho e Aurinéia, cuidava da casa, aquelas coisas que quando se chega cansado em casa se dá valor.
A família de Marilene morava em Japeri, longe demais, mas às vezes eles iam passar um feriadão por lá, quando o movimento na Central ficava muito baixo. Tinha vez até que o Paulo e a Ediléia iam com as crianças também. Seus sogros eram crentes, mas eram pessoas alegres, achavam que cada um tem sua crença e não perturbavam para tentar converter as pessoas. Melhor assim, pois ele era agarrado com Santo Expedito e Nossa Senhora Aparecida, andava com eles na carteira.
Tinha noite que quando estava muito quente, ele se sentava na beira da porta do barraco e ficava olhando a cidade lá do alto. Tem o Morro do Estácio, da Mineira, bem em frente, atrás do Sambódromo; tem o Cristo, aqueles prédios grandes do centro, o relógio da Central – que ele achava uma beleza, aqueles ponteiros marcando a hora certinho, minuto a minuto, sem cair... Às vezes saía tiroteio, tinha umas brigas, mas era só não se meter que nada acontecia com eles. Ele já vira uns rapazes fazendo mira no prédio da Prefeitura, no Morro de São Carlos, doidões, alguns ainda crianças, mas sentia que não podia fazer nada. A vida leva cada um para o seu lado, ele mesmo tentava levar a dele sossegado. É, não podia se queixar.
Um dia a Ediléia do Paulo veio perguntar à Marilene se ela podia ir com as crianças lá para Japeri; era um feriadão, ela ia ajudar nas despesas, não ia dar trabalho. Marilene achou ótimo e aproveitou para mandar os seus dois também, seria uma folga. Ligou para a mãe e ficou acertado que eles iriam, menos o Paulo, que iria aproveitar um monte de shows que ia ter na Lapa para ganhar um extra.
Com outra final de campeonato chegando, e levando fé que seu time não iria ser o vice desta vez, Ósto convidou Paulo para irem ao Maracanã. Ele relutou, disse que seu time tinha sido eliminado e ele não iria lá pra ver o time dos outros, mas acabou concordando. No domingo pela manhã Ósto levantou tarde, com uma baita preguiça, Marilene estava fazendo o mocotó espertíssimo que ele adorava; ficou ouvindo o rádio, tomando uma cerveja para se animar. Lá pelas três e pouco começou a se arrumar – bermuda, camiseta e chinelo –, radinho em punho. Despediu-se de Marilene e desceu com o Paulo.
No estádio o jogo era eletrizante ali na geral. Ele estava até passando mal, porque seu time não abria o placar, apesar de poder até perder. Acabou o primeiro tempo, ele foi ao banheiro sempre imundo, xingou um torcedor do outro time que teimava, sem sucesso, em fazer xixi lá da porta mirando dentro do mictório, tomaram uma cerveja e voltaram. “Vamos ver se agora vai”, esfregou as mãos. “Sei não”, retrucou Paulo. Mas, o adversário veio com tudo, parecia outro time. Ele não acreditava no que estava vendo. Dois minutos, gol! Doze minutos, outro gol! Vinte minutos, mais um... Não! De novo, não! Paulo delirava, mas sem provocar o amigo. Ósto não queria ver aquilo. Resolveu voltar pra casa, pois ganhava mais vendo televisão no sofá.
Pegaram o ônibus até a Novo Rio e foram subindo a pé, ele pensando na gozação que teria que aturar no dia seguinte. Mas nada que um dia de trabalho não espantasse, depois eles se acostumam e param. O Paulo subia quieto, ele não costumava sacanear por causa de futebol, eram amigos. Foram subindo, as TVs ligadas no jogo, alguns já comemorando, os adversários soltavam fogos por ver o tradicional inimigo ficar em segundo de novo.
Quase chegando na bifurcação, Ósto olhou para seu barraco e viu um homem saindo de lá, sem camisa, descendo rapidamente pelo barranco em direção à viela de trás. Ficou gelado! A Marilene?! Será que o Paulo viu? Que filhos da...! Parou por um momento, passou a mão pela testa para secar o suor, desligou o radinho, pensando no que fazer. Será que o Paulo viu?... Foi andando devagar, derrotado; ele não podia acreditar naquilo, era demais. Na bifurcação, quando, sem graça, ia falando “té mais” pro Paulo, este se vira para ele e diz: “Aê, Ósto, na boa? Tem jeito não: tu nasceu pra ser vice mêrmo, mané!”.