Quem era aquele homem que chegava a qualquer hora, de camiseta regata, chinelos de couro, um imenso anel de ouro, as iniciais em relevo, com um cinto de couro marrom e uma fivela de ouro, também com as iniciais, fumando um cigarro Belmont, um palito nos dentes, as unhas compridas, feitas e pintadas de esmalte incolor... e que dormia na cama da minha mãe? Não me dirigia a palavra. Sentava-se à mesa e era servido primeiro, minha mãe parecia ter medo dele, ficávamos mudos à mesa, eu, meu irmão mais velho e minha irmã, também sete anos mais velha que eu. Um dia ele pegou meu pedaço de frango preferido. Fiz um escândalo, fui repreendida por minha mãe, que ele poderia pegar o pedaço que quisesse e eu deveria me calar. Assim como chegava, partia. A casa permanecia, ainda por umas horas, como que coberta por uma aura negra, minha mãe ia para o quarto e chorava; meu irmão ia para a rua, minha irmã voltava a ler suas fotonovelas na Capricho. Eu, estupefata, meio deslocada, mas sem deixar de pensar por que mesmo esse homem aparece e desaparece? Perguntei à minha irmã, baixinho, por que ele podia comer o “meu” pedaço de frango. “Ué, ele é o pai! Deixa de ser boba!” O pai? Não me lembrava dele, tão raras as suas visitas. Ninguém falava nele, ou dele. Depois aprendi que quando ele chegava, lá embaixo, na praça, e minha mãe dizia, como a um cachorro: “lá vem o seu pai!”, eu deveria sair correndo, como que liberta da coleira, para recebê-lo, com lambidas e abanadas de rabo, sem dizer palavra, mas sorrindo. Ele me pegava no colo e me descarregava na porta de casa. Mas não falava comigo.
Numa tarde morna de final de verão, estava eu, depois do almoço, alvoroçada como convém a uma criança de cinco anos. Minha mãe ouvia a Rádio Nacional lá de seu quarto, deitada; minha irmã sentada na cama, com suas fotonovelas. Resolvi implicar com ela, mal sabendo que estava interrompendo um ritual. Ela se irritou com as brincadeiras e a uma certa altura gritou: “mãe, olha ela me perturbando!”. Saí rindo em direção à minha mãe, orgulhosa das minhas travessuras. Ato contínuo, ela gritou também, para mim: “bem que quando seu pai queria que te matasse não era à toa, não!”. Estanquei. O sorriso que tinha nos lábios se foi. “Matasse”? Como? Aquele homem queria me matar? Por que? O que eu havia feito? Murchei como um buquê, daqueles que ficam em cima de sepulturas, ao sol. Minha irmã falou que ainda não era hora de eu saber. Quando mais velha soube que “meu pai” era motorista de caminhão; numa dessas paradas em casa, engravidou minha mãe. Mas já tinha uma mulher no Rio. Fui sua desculpa: “esta criança não é minha, melhor tirar!”. Melhor me matar.
Outro dia, num asilo onde o descobri, aos 87 anos, sozinho, jogado lá por uma de suas mulheres, quase cego, murcho, sua pose havia desaparecido. Consegui conversar algo sobre minha infância. Ele disse que eu tinha medo dele e ele não sabia porquê. Eu disse que possivelmente ainda tenho, porque não consegui ir a lugar nenhum na minha vida. Num domingo de visitas eu finalmente falei! Querido pai: você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Quer saber?, perguntei, cínica, enquanto cortava suas desleixadas unhas.